Apropriação ou censura: quem é o Curupira, personagem folclórico que gerou polêmica entre esquerda e direita
A história do Curupira certamente esteve presente na infância de todos os brasileiros. Apresentado na escola como um personagem folclórico oriundo de uma lenda indígena, o Curupira é um menino de cabelos vermelhos e pés ao contrário que ataca quem entra na floresta para caçar animais ou derrubar árvores.
Esse personagem tem sido objeto de acalorados debates por causa do filme “Curupira – o demônio da floresta”, de Erlanes Duarte. A obra conta a história de um grupo de amigos que vai a uma ilha deserta e começa a ser perseguido por essa criatura da floresta, que faz o papel de vilão do filme. E é aí que começa a discussão, já que, dentro da cultura indígena, o Curupira é um regulador da floresta, não um assassino sanguinário.
O primeiro registro escrito dessa lenda aparece em 1560, em um relato de padre José de Anchieta. A lenda diz que ele só castiga quem mata mais animais do que precisa para se alimentar, mata fêmeas grávidas ou destrói a natureza. No filme, entretanto, ele é apresentado como extremamente cruel, um assassino frio, que vai eliminando todos os jovens que aparecem em seu caminho.
Essa caracterização gerou uma série de críticas. Lideranças indígenas se manifestaram nas redes sociais afirmando que o filme faz uma apropriação cultural e distorce a história original, demonizando a figura indígena, do mesmo modo que os orixás africanos foram demonizados ao longo da história.
Essa polêmica já tinha sido levantada com a série “Cidade Invisível”, de Carlos Saldanha. Apesar do sucesso de público que a produção teve, muita gente criticou a presença de personagens como anhangá, cuca, saci e iara, sem que houvesse qualquer representante indígena na obra.
Tanto a produção de Saldanha quanto a de Duarte receberam um enxurrada de críticas nas redes sociais, impulsionando o debate sobre folclorização e apropriação cultural. Ao ser questionado sobre a polêmica, o diretor de “Curupira – o demônio da floresta” afirmou que “o folclore não tem dono” e que se trata de uma obra de ficção que não tem o objetivo de “agredir etnias, religiões, crenças”.
Atualmente, o próprio termo folclore tem sido questionado, pois ele é considerado fruto de uma visão colonial que, segundo alguns críticos, seria uma forma de diminuir a cultura indígena, transformando entidades indígenas em lendas infantis.
Em sua obra “Apropriação cultural”, Rodney William discute a questão da apropriação cultural partindo de uma perspectiva histórico-cultural do colonialismo. Com base na análise do processo de aculturação a que foram submetidos os escravizados, ele afirma que, atualmente, o capitalismo se apropria de traços culturais de povos que vivem à margem do poder para lucrar, esvaziando o caráter simbólico que esses objetos e elementos culturais têm originalmente.
Para ele, o uso de turbantes, dreads, cocares, pinturas corporais colabora para reforçar o imaginário de que vivemos em uma democracia racial. Esse uso, porém, nem sempre ocorre de forma tranquila, gerando conflitos e promovendo um esvaziamento de significados que levam ao debate acerca dos limites do uso de elementos típicos de um determinado povo e fomentando a discussão sobre apropriação cultural.
William faz uma distinção entre a noção de propriedade e de pertencimento quando se trata de cultura. Para ele, o corpo de um negro e de um indígena está marcado por cultura e memória, portanto, ao se apropriar de elementos dessa cultura é preciso conservar as devidas referências e contar com a permissão daqueles que pertencem a essa cultura.
A discussão sobre o filme do Curupira se insere nesse debate. De um lado, há quem diga que se trata de mais uma apropriação cultural, de uma ação da cultura hegemônica que distorce a cultura indígena. Do outro lado, temos quem defende a liberdade de criação e o fato de que se trata de uma obra de ficção, que recria um personagem folclórico.
O debate está bem distante de um consenso.
Referências:
William, Rodney. “Apropriação cultural”. São Paulo: Pólen, 2019.
CASCUDO, Luís da Câmara. “Dicionário do folclore brasileiro”. 4 ed. Rio de Janeiro: Edições Ouro, 1969.