Da melancolia à depressão: como esse mal foi visto ao longo da história
Em seu poema “Dispersão”, o poeta português Mário de Sá Carneiro fala sobre alguém perdido dentro de si: “Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim”. Em “A minha dor”, Florbela Espanca fala de um claustro que prende a sua alma: “A minha Dor é um convento ideal / Cheio de claustros, sombras, arcarias, / Aonde a pedra em convulsões sombrias / Tem linhas dum requinte escultural”. Através da beleza das palavras, os dois traduziram poeticamente esse estado de alma que aprisiona, sufoca e consome. Os dois sentiram na pele a dor que expressam em sua poesia e colocaram um fim a essa dor tirando suas vidas.
Vítimas de um mal que marca a humanidade desde que ela existe, Florbela Espanca e Mário de Sá Carneiro são dois exemplos de como a depressão consome quem sofre desse mal, enclausurando-o dentro de si mesmo, preso em meio a uma dor que insiste em não cessar.
Ao longo da história, a depressão esteve associada à melancolia e ao peso que a religião exercia sobre os homens. Segundo Andrew Solomon, em sua obra “O demônio do meio-dia”, a palavra melancolia aparece na “Ilíada”, de Homero, para referir-se a Bellerofonte, um personagem condenado pelos deuses, cuja vida era marcada pela solidão, ódio e melancolia. Esse sentimento, portanto, era fruto de um castigo divino.
No século IV a.C., os gregos relacionavam as doenças do corpo a problemas da mente. A melancolia era associada ao excesso de bile negra. Segundo Hipócrates, esse mal poderia ser tratado com a mudança de hábitos alimentares e ritmo de vida.
Para Aristóteles, os distúrbios do corpo afetavam a alma e os problemas da alma afetavam o corpo.
Diferentes pensadores trataram dos efeitos da bile negra no ser humano, muitos deles afirmaram que a melancolia era um fator universal na humanidade. Conforme Rufos de Efésios, as pessoas nasciam depressivas ou assumiam essa condição ao longo da vida.
Durante o Império Romano, a melancolia passou a ser estudada de forma mais detalhada. Areteu da Capadócia afirmava que a depressão era resultado de um esfriamento da alma.
Durante a Idade Média, aqueles que sofriam de melancolia eram vistos como indivíduos afastados de Deus, acreditavam que pessoas dominadas pela tristeza estavam possuídas por um demônio e o tratamento recomendado era o exorcismo. Se isso não funcionasse, restava ao melancólico colocar um fim à vida. Isso, porém, o afastaria ainda mais de Deus e comprovava que ele realmente estava dominado por forças demoníacas.
No século XII, além dos sete pecados capitais, havia o pecado da acedia, um mal que paralisava o indivíduo e o afastava dos seus deveres. Esse termo era empregado em mosteiros, quando os monges deixavam de cumprir as suas tarefas diárias. Esse sentimento que afastava os religiosos de suas obrigações era chamado de “demônio do meio-dia”, pois acontecia em momentos do dia em que parecia que o sol não estava em movimento.
Tratada como um pecado, a acedia afastava os homens da salvação, deixando-os sem esperança e sem qualquer possibilidade de conexão com Deus.
Durante o Renascimento, o filósofo Marcilio Ficino dizia que os melancólicos entravam em um estado de luto provocado por uma insatisfação com a vida. No século XVI, a melancolia era vista como um mal das pessoas inteligentes, uma doença típica da aristocracia.
No século XVII, Robert Burton apresenta uma importante compilação de tudo o que havia sido dito sobre a melancolia até aquele momento. Ele estabelece uma comparação entre o corpo humano e um relógio, afirmando que se uma peça não funciona, todas as outras começam a apresentar falhas.
Nessa mesma época, René Descartes escreveu sobre o tratamento de doenças mentais, mostrando como distúrbios da mente podem afetar o corpo e vice-versa.
Os avanços científicos do século XVIII fizeram com que os estudos sobre saúde mental também avançassem. Com a valorização da razão, a depressão passou a ser tratada como um problema que precisava de tratamento e o depressivo passou a ser considerado alguém que não tinha autodisciplina para controlar a sua saúde mental.
No século XIX, surgiram diferentes definições para a melancolia, suas causas e os critérios para o seu diagnóstico passaram a ser buscados. A associação dessa enfermidade com a religião foi descartada e os médicos passaram a buscar causas fisiológicas para o que os pacientes sentiam. Medicamentos passaram a ser empregados nos tratamentos e os estudos sobre saúde mental se intensificaram.
A partir de 1860, o termo depressão passa a aparecer na literatura médica e gradativamente vai assumindo o lugar da palavra melancolia para referir-se a esse estado que domina a vida de tantas pessoas.
No início do século XX, Sigmund Freud surge como um grande nome no estudo da depressão e a Psicanálise passa a ser um caminho para lidar com os traumas. A melancolia era tratada como uma ferida que dominava o inconsciente e diferentes tratamentos começam a ser propostos.
Atualmente, a depressão é considerada uma doença grave, responsável por afastar milhões de pessoas ao redor do mundo dos seus postos de trabalho e uma das principais causas do suicídio. Conforme estudos da área de psicanálise, a depressão é um processo enlutado de vida, que produz uma intensa dor psíquica, causando um buraco na existência e um sentimento de tristeza profunda. Considerada o mal do século XXI, ela foi um mal presente em toda a história da humanidade.
Florbela Espanca diz que a sua Dor é um “triste convento”, onde mora, grita e chora “E ninguém ouve … ninguém vê … ninguém …”. Enxergar essa dor, compreendê-la como uma doença que exige tratamento e combater o preconceito em torno dos transtornos mentais é uma forma de auxiliar quem sofre desse mal e ajudá-lo a sair dessa prisão que o encarcera dentro de si mesmo. Mostrar que enxergamos a sua dor, que ouvimos os seus apelos, mesmo quando eles são silenciosos, é um caminho importante no processo de tratamento. Entender que essa dor é tão séria quanto qualquer dor física é uma forma de combater a negligência ainda tão frequente em relação a essa doença.
Imagem: “Melancolia”, de Edvard Munch
Referências:
Berlinck, L. C. “Melancolia: rastros de dor e de perda”. São Paulo: Humanitas: Associação de Acompanhamento Terapêutico, 2008.
PERES, Urania Tourino. “Depressão e Melancolia”. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
SOLOMON, Andrew. “O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão”. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
TAVARES, Leandro Anselmo Todesqui. A depressão como “mal-estar” contemporâneo: medicalização e (ex)-sistência do sujeito depressivo. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.