O ciclo eterno do ódio: o que é cultura do cancelamento e como estamos nos perdendo nela
Há algumas semanas, após publicarmos uma matéria sobre o Nikola Tesla, fomos surpreendidos por um longo debate entre as pessoas que cancelavam o físico por ele ter sido adepto da Eugenia (pseudociência que acreditava que existiam raças mais evoluídas que outras) e os defensores de Tesla, que diziam ser essa postura racista fruto do tempo em que ele viveu.
O que podemos observar dessa discussão? As práticas e mecanismos do julgamento moral na internet.
O linchamento, desterramento ou o ostracismo sempre existiram na história da sociedade e sempre foram usados como castigo, visto que o homem é um ser social por essência.
O termo “cancelamento” surgiu fazendo alusão à palavra usada para romper contrato com alguém. Cancelar, no significado mercadológico, é umbilicalmente ligado à boicote. A cultura do cancelamento é um fenômeno da internet e surge em 2017, com as sucessivas denúncias de abuso e assédio sexual cometidas, durante anos, pelo produtor hollywoodiano Harvey Weinstein. A partir da denúncia, a hashtag #metoo, incentivou outras mulheres a denunciarem seus agressores e assediadores, em uma grande corrente que ajudou a desmascarar vários magnatas poderosos, que a justiça nunca se deu ao trabalho de julgar.
A prática do cancelamento, então, entrou para o dicionário das redes sociais e encontrou um campo fértil para que pessoas comuns pudessem boicotar famosos e influencers.
Porém, a prática, ao longo de poucos anos, foi ficando casa vez menos seletiva. Se antes para ser cancelado era preciso ter cometido um crime, atualmente se tem notícias de pessoas que sofreram cancelamento por uma palavra fora do contexto ou pelo simples fato de cortarem o cabelo de uma forma que desagrada fãs.
Foi o que ocorreu com a Italina Laura Mesi, que após ser abandonada pelo noivo resolveu casar com ela mesma e fazer uma festa de casamento. Laura foi cancelada nas redes, pois o campo da esquerda acreditava que casamento era patriarcal e, portanto, venerar essa instituição não era saudável e a direita cancelou por ela ter, segundo eles, “desdenhado” do contrato matrimonial. Mesi entrou em uma depressão profundas e quase tentou suicídio.
Nas últimas semanas, os brasileiros têm ficado assustado com o que estão vendo no Big Brother Brasil. Embalados pelo sucesso da casa e observando como os participantes da versão anterior precisaram pisar em ovos para não passar por cancelamento, todo mundo parece ter entrado ali sob a orientação de assessores, tentando falar sobre palavras que agradem a militância organizada de cancelamento, em poucos dias, já ouvimos à exaustão palavras como: privilegiado, minorias, orientação sexual, gênero, empatia, resiliência. Espécies de códigos que fazem com que os dedos das pessoas no gatilho do mouse sosseguem. Poucos brothers ali passam, nesse momento, sinceridade em suas ações. Eles estão sendo personas, estão em personagens condicionadas pelas exigências sociais de seu público e do público do programa.
Mas, tirando essas questões, tudo ia bem no programa até que Lucas Koka tomou umas cervejas a mais em uma das festas e virou o famoso “bêbado chato e agressivo”. O rapaz, munido de palavras de militância e colocando o dedo em riste no rosto de outros participantes, acabou atormentando a cabeça do pessoal e acabando com o lazer.
No outro dia, todo mundo arrumou uma forma de tripudiar sobre a mente do rapaz. Além dos sermões, o Twitter parece ter ganhado vida no lugar e cenas extremamente cruéis vieram à tona.
Lucas passou a ser deixado de lado, tendo que comer sozinho e fazer outras atividades sem a presença dos outros participantes. Não sabemos se o cancelamento aconteceu por um cálculo dos participantes, querendo agradar aos moralistas canceladores de fora, ou se realmente estão sentindo prazer em puni-lo com o ostracismo. O destaque ficou com a rapper Karol Conka que se mostrou muito agressiva e intolerante ao perdão, tratando Lucas de forma violentíssima. O índice de rejeição à cantora subiu de forma absurda, mesmo ela reproduzindo exatamente a ação dos canceladores de Twitter. Algumas pessoas chegaram a alegar que Conka estava praticando tortura psicológica.
O evento mostrado no BBB é importante porque nos faz refletir se nós temos mesmo o direito de cancelar a reputação de alguém, de realizar um cancelamento virtual, um boicote com pitadas de linchamento.
Não há diferença entre mandar alguém para a cadeira elétrica e assassinar sua reputação, condenando-a ao ostracismo. O homem tem a vida biológica e a social, o cancelamento se encarrega de tentar tirar a segunda.
O debate sobre a Karol e Lucas rapidamente caiu na internet como uma bomba. E agora? Será que fizemos errado em cancelar tanta gente?
Não sabemos como isso terminará, mas certamente o cancelamento cria um ciclo de ódio que incide sobre corpos e mentes.
O mouse vira uma bazuca, o teclado se transforma em um pente cheio de munição, pronto para matar o julgado da vez.
O tribunal moral da internet não tem um cardápio, uma receita a se seguir. Tudo pode virar motivo para os tiros, tudo pode ser cancelado. E isso é muito perigoso
Em setembro, a galera aparece vestida de amarelo, lutando contra o suicídio. É uma data representativa, mas bem hipócrita, para quem passou o ano todo destruindo o psicológico das pessoas com palavras escritas por código binário.