A questão racial nos Estados Unidos: das primeiras fazendas ao Black Lives Matter
A história dos Estados Unidos é uma trajetória moldada pelo racismo. Conhecer esse processo é entender por que devemos nos conscientizar sobre esse problema social grave
A escravidão, a guerra e o nascimento do ódio
Os Estados Unidos, como quase todas as colônias americanas, desde muito cedo, passaram a fazer uso da escravidão de pessoas negras para fazer o sistema econômico funcionar, prática terrível e sem escrúpulos.
O país tinha um sistema de importação de pessoas escravizadas e exportação de algodão, rum, chá e fumo para a Europa. Esse sistema, que gerava um enorme lucro aos colonos, era chamado de comércio triangular.
O comércio triangular fez aumentar o número de escravizados não apenas em território Yankee, mas também na América Central, local que sofria grande influência dos norte-americanos e hospedava muitas de suas plantações e negócios.
Nesse período, entre os séculos XVII e XVIII, os escravizados chegavam ao país por meio dos Portos de Louisiana e Flórida e eram distribuídos em grandes fazendas no Mississipi, Alabama e Geórgia, locais que sempre foram extremamente racistas.
As feiras de escravizados, vindos de diversas áreas do continente africano, eram eventos horrendos. O comprador poderia até estuprar a escravizada, tinha locais para isso nos próprios mercados.
Ao sistema de produção agrícola dava-se o nome de Plantation, uma grande extensão de terra com cultivo de apenas um produto, tinha fazendas do tamanho de grandes cidades que, em um espaço territorial, plantavam apenas algodão, chá ou fumo.
Os escravizados dormiam em senzalas ou grandes celeiros, junto com os animais. Na maioria das vezes, o tratamento era desumano demais até para detalhar. Estupros, chicotadas, assassinatos a sangue frio, sacrifício de escravizados doentes eram práticas comuns.
O escravizado tinha apenas 3p: pau, pão e pano, bem semelhante ao que acontecia no Brasil nesse mesmo período. Os fazendeiros também criaram uma espécie de sistema de méritos (sim, méritos no meio da escravidão), que visava hierarquizar e colocar um negro contra o outro através da distribuição de funções.
Foi assim que nasceu o “negro da casa”, o escravizado que, por ser próximo ao senhor, se identificava como um privilegiado mais íntimo do dono do que dos seus semelhantes de labuta.
Mas os negros não aceitaram pacificamente o processo de escravização. Houve inúmeros movimentos de revolta, nos quais fazendeiros foram enforcados e mortos a pauladas.
Toda vez que ocorria uma revolta dessas ou fugas em massa, a repressão aumentava na região onde havia ocorrido.
Uma revolta famosa foi liderada por Nat Turner, um escravizado pregador do evangelho, que era usado por donos de fazenda para evangelizar e convencer outros negros de que a escravidão estava na bíblia, conforme mostra o filme “Nascimento de uma Nação”, de 2016.
E, dessa forma, os EUA foram tocando séculos de escravidão de pessoas negras, em um circo tenebroso de horrores, porém que enriquecia muita gente.
Compreendendo isso, vamos dar um pulo para o século XIX, período importante para entender a questão racial norte-americana.
Os EUA terminam o século XVIII como um país independente da Inglaterra. Com a economia em franca ascensão, o país inicia sua Revolução Industrial ao longo da primeira metade do XIX. O Norte, com a invenção do descaroçador de algodão, começa a construir inúmeras fábricas.
Essas fábricas passaram a adotar mão de obra assalariada e a fabricar roupas no próprio país, prejudicando a exportação do produto para a Europa e sendo prejudicadas pela concorrência, já que escravagistas do Sul não tinham gastos com salários.
O mundo também passava, culturalmente, a reprovar a escravidão. A Inglaterra já encampava a proibição do tráfico no Atlântico e muitos políticos já haviam sido eleitos com a pauta a favor da abolição. O fim da escravidão ganhava força nas igrejas e na sociedade do norte do país.
Um homem chamado John Brown e seus filhos picaram na espada vários escravagistas, ele andou pelo sul dos Estados Unidos matando fazendeiros. Harriet Tubman libertava escravizados através de rotas clandestinas.
Então, em uma função de interesses contrários entre o sul e o norte, entre abolicionistas e escravagistas, a abolição da escravidão passou a ser a principal pauta no país. E o Sul, vendo que estava perdendo a batalha, saiu da Federação e formou um Estado paralelo: os “Confederados”.
Nas eleições de 1860, Abraham Lincoln, francamente contra a escravidão, foi eleito presidente. Os confederados declararam a saída da federação e nomearam Jefferson Davis como presidente. Começava ali a Guerra Civil, importantíssima para entender a questão racial.
Foram quase 5 anos de guerra, um conflito que assolou de norte a sul do país. Muitas mortes, confrontos, gerações inteiras ceifadas. Em determinado momento do conflito, Lincoln aprovou a 13ª Emenda, a qual abolia a escravidão.
“Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. Os escravizados também podiam ir para o norte lutar pela união e seriam libertos.
O Sul perdeu a guerra e, ao fim do conflito, além de ter que arcar com prejuízos pesados, perdeu a mão de obra. Assim, os fazendeiros precisaram roçar mato. Lincoln foi morto por um fanático.
Muitas fazendas, mesmo contra lei, ainda escravizavam pessoas.
Houve um plano de inclusão da mão de obra negra assalariada.
Os EUA chegaram a patrocinar a fundação da Libéria, para levar pessoas negras para o continente africano, uma vez que a sociedade norte-americana já era extremamente racista.
Outras medidas de inclusão foram tomadas, como a concessão de terras da União para pessoas negras, ajuda na compra de insumos e maquinários para a produção agrícola. Teve negro que começou a ficar rico e a ganhar espaço na sociedade e na política. Vale lembrar que o Brasil não fez nada disso, por isso, a situação dos negros aqui é diferente da norte-americana.
O governo dos estados do Sul e a população passaram a cultivar ódio e colocar a perda da guerra e toda a desgraça econômica da região nas costas dos negros, como se eles fossem culpados. Foi nesse período que se formou a Ku Klux Klan, organização racista.
As leis, as lutas e o árduo caminho da sobrevivência na terra da “liberdade”
No final do século XIX, as ideias científicas ligadas ao pensamento evolutivo criaram a Teoria Eugenista, que sustentou todo um sistema de pensamento que separava pessoas por raças.
Na escala evolutiva desse pensamento, os negros eram intelectualmente e culturalmente inferiores aos brancos. Esse pensamento predominou por anos. Mesmo diante do fato de os negros terem criado o Jazz, Blues e a música gospel, essa visão não se alterou. A legitimação científica junto com o ódio que os brancos cultivavam contra os negros fizeram com que os Estados Unidos criassem um conjunto de leis que segregava as duas raças. Esse conjunto de legislação era chamado de Leis Jim Crow e era vigente em muitos estados, principalmente no sul do país.
Podemos citar como exemplos dessa segregação o fato de que negros não podiam se casar com brancos, havia escolas separadas, restaurantes com entradas diferentes, boa parte dos negros não podia votar.
Os governos sulistas também criaram permissão para que presidiários executassem trabalhos forçados, o que ajudou os fazendeiros do Sul que, na época, ficaram sem escravizados. Após a criação dessas leis, o que a polícia branca passou a fazer? Prender negros, que continuaram trabalhando para muitos desses fazendeiros. Os ex-escravizados, agora como detentos, prestavam serviços a seus ex-senhores, pois muitos desses brancos ricos viraram donos de empreiteiras realizadoras de obras públicas, nas quais, prioritariamente, os detentos trabalhavam. No período, os negros chegaram a ocupar 70% das celas em alguns estados.
As leis Jim Crow também possibilitaram a repressão legal dos negros, possibilitando que eles fossem julgados em júris formados só de brancos, com juiz e promotores também arianos.
Mas, poucas coisas foram tão cruéis com a imagem dos negros e tão eficazes para constituir uma mentalidade racista, como o filme “ O Nascimento de uma Nação”, de DW Griffit, lançado em 1915. Esse filme foi tipo o “Titanic” na época. Ele fez um sucesso estrondoso, sendo reproduzido até na Casa Branca. No longa, de quase quatro horas, o diretor reconstitui a guerra civil, colocando a culpa do conflito na conta dos negros. Em boa parte do longa, o roteiro mostra a Ku Klux Klan como heróis da nação e mostra os negros como animalescos.
Foi nesse período que se popularizou a Blackface, técnica de pintar a face para satirizar negros, já que, na época, não se dava espaço para atores de outras raças nas telas do cinema.
O sucesso de público do “Nascimento de uma Nação”, filme mais racista da história, ajudou a transformar a mentalidade da sociedade branca norte-americana em relação à figura do negro. Em determinado momento da projeção, um homem negro, com trejeitos animalescos, tenta estuprar uma mocinha branca. A mulher, desesperada, prefere pular de um penhasco a ser estuprada pelo vilão. Griffiti, o diretor, resolveu mexer com as esposas dos homens brancos, consideradas, conforme palavras deles, a “propriedade” que um sulista poderia ter. Em poucos anos, após o filme, milhares de homens negros foram condenados, linchados e enforcados por serem suspeitos ou potenciais autores de estupros de mulheres brancas. Essa mentalidade persiste até hoje e é possível encontrar muitos registros desse pensamento na realidade cotidiana.
Foi também no início do século XX, em 1909, que alguns negros influentes fundaram a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), organização muito importante na história da resistência negra, pois, com a participação de jovens estudantes, pastores, líderes de bairro, advogados, professores, entre outros negros bem sucedidos na sociedade, a instituição passou a organizar a resistência através da alfabetização, educação e assistência jurídica para a população de cor norte-americana.
A NAACP acompanhou, durante mais de 30 anos, a morte, o enforcamento e a condenação sistemática de negros em todas as partes dos Estados Unidos. Muitos negros tiveram que se refugiar em grandes cidades do norte do país, fundando bairros negros famosos que viraram berço do Jazz, do Blues e da cultura Black em geral.
Mas, no Sul, nos estados mais racistas como Flórida, Carolina do Sul, Alabama, o pau comia. Fotografias de negros enforcados e linchados eram vendidas como cartão postal em filiais dos correios, meninos e meninas brancas eram ensinadas a odiar e subjugar o negro dentro das escolas. Podemos contar inúmeras dessas histórias terríveis que brancos fizeram com negros, achando tudo normal. Laura Nelson, William Brown, George Stinney Jr, são nomes através dos quais uma pequena pesquisa no Google pode dar a dimensão de quão horrível era a opressão aos negros no período.
A grande luta, as conquistas e a continuidade do genocídio
Em 1955, uma costureira voltava para casa em um ônibus, na cidade de Montgomery, Alabama. O nome dela era Rosa Parks. Em determinado momento da viagem, um homem branco ingressou no transporte e ordenou que Rosa saísse do lugar, pois ele gostaria de sentar ali. Na época, o lugar dos negros era no fundo do ônibus e, mesmo no fundo, se o veículo lotasse, eles deveriam dar o lugar para brancos. Mas Parks não obedeceu e foi levada à delegacia, foi fichada e detida. Em menos de duas horas, mais de 500 negros estavam na porta do departamento policial. Dentre eles, havia um jovem pastor batista chamado Martin Luther King, membro da NAACP. Doutor King planejou junto à associação um boicote ao transporte público da cidade. Negros e brancos que concordavam com a causa pararam de pegar ônibus por um ano.
O ato rendeu grandes prejuízos para empresários que, por sua vez, pressionaram o governo municipal e estadual. Durante o boicote, pelo menos uma vez por semana, os negros de Montgomery se reuniam para marchar pela cidade. Nascia ali o movimento conhecido como “Marcha pelos direitos civis dos negros”. A manifestação consistia em visitar cidades racistas e marchar nas avenidas principais, à mercê de tiros, cuspidas e suscetíveis a todos os tipos de violências perpetradas pela população branca. Mais para o norte do país, um homem negro, vindo do Harlem, encarcerado por roubo se convertia ao Islamismo e passava a pregar a identidade e o nacionalismo negro dentro do presídio. Seu nome era Malcolm Little, mais conhecido, posteriormente como Malcolm X. Diferente de King, X era muito mais radical e tinha um discurso ligado ao embate violento contra os brancos. Ele dizia que os brancos norte-americanos viviam o sonho americano, enquanto faziam os negros viverem o pesadelo. Malcolm foi solto e passou a pregar pelos quatro cantos do país a importância de ter uma identidade negra bem resolvida e a ideia do pan-africanismo, uma nação formada por negros que, na visão dele, tinha uma superioridade em relação aos brancos.
Esses dois líderes foram muito importantes para a história da luta por direitos civis. Mas muitas outras personagens participaram, por exemplo, Dorothy Counts, primeira mulher negra a ser incorporada numa escola para brancos na Carolina do Norte.
A década de 60 foi considerada o boom da luta contra o racismo e por direitos.
A questão se acirrou tanto que governadores, prefeitos e presidente dos EUA passaram a propor e promulgar leis antirracistas. Foi assim que nasceu a lei do voto, facilitando o alistamento eleitoral para negros, e a lei dos direitos civis, extinguindo totalmente a segregação em espaços públicos.
Só que tudo isso teve um grande preço, os principais líderes dos movimentos pelos direitos civis foram assassinados, Malcolm, em 1965, por gente do seu próprio culto e King, em 1968. Nos anos 70, uma nova geração e estilo de luta contra o racismo ascende. Nas grandes cidades, nascem os Panteras Negras, grupo com intuito de valorizar a cultura negra e impedir a opressão, principalmente da polícia, uma instituição que não conseguiu se adaptar às novas leis antirracistas. Os Panteras Negras forneciam café da manhã às crianças pobres, ofereciam escola onde ensinavam a cultura e sobre heróis negros, distribuíam cestas básicas e faziam vigilância nas ruas dos bairros negros para impedir abuso policial.
O grupo, que estava em vias de se tornar oficialmente um partido com alcance nacional e eleitoral, foi sabotado e perseguido pelo FBI e outras instituições policiais. Seus principais membros, como Fred Hamptton foram assassinados pela polícia. Porém, mesmo com a perda, o partido deixou como legado uma grande influência na autoafirmação da cultura Black, que passou a habitar a vida das pessoas pela música, moda e tribos urbanas.
Nos anos 80 e 90, a política de “Guerra às Drogas”, iniciada por Ronald Reagan, colocou novamente os negros como alvo do Estado.
Garotos e homens eram presos diariamente e o encarceramento em massa da população negra ceifou a vida de muitos cidadãos.
Mesmo com todo o histórico de luta, a polícia continuava matando e prendendo negros sem nenhum tipo de censura. Alguns estados, como Nova York, precisaram realizar reformas nas corporações, colocando duplas de policiais inter-raciais, para evitar abusos.
Os casos de violência e abusos, no entanto, não diminuíram.
Em 1992, por exemplo, um taxista chamado Rodney King apanhou mais de 50 vezes de 4 policiais. Los Angeles, cidade onde ocorreu o fato, virou uma bomba, passando quase 15 dias em um distúrbio racial pesado, no qual muitas pessoas ficaram feridas e mais de 30 perderam a vida.
Na virada do milênio, as coisas continuavam na mesma situação. Em 2012, um garoto negro foi morto por um vigia. A população negra, revoltada mais uma vez, sai às ruas para protestar, ali, naquele momento de luta, nasce o movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam), para mostrar o quanto, para a polícia, os negros eram o alvo preferencial em qualquer operação de rotina.
A história do racismo nos Estados Unidos é uma montanha de corpos negros que tiveram as vidas retiradas pelo Estado. Essa é a luta desde que o primeiro negro escravizado pisou em território estadunidense.
Os distúrbios que hoje assolam o país yankee são resultados desse processo histórico, regado a muito sangue, lutas e resistência.
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Referências:
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BULLOCK, Henry Allen. A history of negro education in the South: from 1619 to the present. Cambridge: Harvard University Press, 1967.
CAMPBELL, James E. Party systems and realignments in the United States, 1868-2004. Social Science History, vol. 30, n.3. 2006. p. 359-386.
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