O que é cultura do estupro?
Entenda o significado desse conceito e o porquê da importância de se refletir sobre ele
“Olha a roupa que ela estava usando”!; “O que fazia na rua a uma hora dessas?”; “Ela estava pedindo!”; “Ela estava bêbada!”; “Mas também ela não se dá ao respeito!”; “Ele só fez o seu papel de homem!”; “Ela devia estar gostando, porque não denunciou!”. Frases desse tipo são repetidas com uma frequência enorme toda vez que um caso de violência sexual é denunciado. A naturalização do abuso e a culpabilização da vítima ocorrem rotineiramente quando se discutem casos de estupro, assédio ou qualquer outra forma de violência sexual. A essa naturalização tem-se dado o nome de cultura do estupro, conceito usado para defender a ideia de que circulam socialmente valores, práticas e discursos que legitimam comportamentos de violência sexual e procuram justificá-la sempre que casos de estupro vem à tona.
A expressão cultura do estupro surgiu nos Estados Unidos nos anos 70. Em sua obra “Sexual politics”, de 1970, a feminista Millet defendia a ideia de que o estupro estava relacionado ao comportamento sexual atribuído ao homem, não a uma questão de distúrbio mental. Em “Against our will”, de 1975, Susan Brownmiller desenvolve a ideia que permeia esse conceito até os dias de hoje. Para ela, a cultura americana definia a sexualidade masculina como algo naturalmente agressivo, enquanto reservava à mulher um papel passivo, marcado pela polidez, pela delicadeza e pela aceitação do domínio masculino.
Segundo Brownmiller, momentos de guerra reforçam a cultura do estupro, pois os soldados são estimulados a estuprarem as mulheres como uma forma de reafirmação de seu poder e de elevação moral da tropa. Desse modo, a sexualidade masculina seria frequentemente associada a comportamentos violentos, enquanto à mulher caberia a passividade e submissão.
Conforme essa visão, desde cedo, as mulheres são ensinadas a não andarem sozinhas, a não se vestirem com roupas insinuantes, a evitarem lugares escuros e uma série de outras precauções que culturalmente vão delimitando qual é o lugar da mulher e do homem na sociedade. Além disso, essa construção do homem como dominante e violento seria reforçada por filmes, músicas, livros, propagandas, que objetificam a mulher e estimulam um comportamento sexual violento por parte do homem.
Para Brownmiller, “todo estupro é um exercício de poder”, assim, é importante desconstruir a ideia de que o estupro é fruto apenas de um desejo sexual violento de pessoas desajustadas e aceitar que ele é praticado por homens comuns, conscientes de seu desejo de subjugação do corpo feminino e da vontade de exercer um papel de dominação. O ato é odioso e monstruoso, mas, conforme as estatísticas, quem o pratica, na maior parte das vezes, não tem nenhum distúrbio mental e faz parte do círculo de convivência da vítima.
No Brasil, a expressão cultura do estupro passou a ser usada com mais frequência a partir de 2016, quando a notícia de um estupro coletivo praticado no Rio de Janeiro ganhou uma repercussão imensa em todo o país e os julgamentos da moral da vítima e do lugar em que ela estava acabaram ganhando mais destaque em alguns meios que a violência extrema a que ela havia sido submetida.
Em um país no qual a cada 11 minutos uma mulher é estuprada e 10 casos de estupros coletivos são registrados por dia, o debate sobre a violência sexual, suas causas e consequências é extremamente urgente. Desse modo, diversos movimentos trazem o conceito de cultura do estupro como uma forma de refletir sobre o modo como meninos e meninas são educados desde a infância e sobre como há uma naturalização da violência contra a mulher em diversas instâncias. Conforme essa visão, quando se ensina, desde cedo, o menino a tratar a mulher como objeto sexual, a rir de piadas que a desqualificam ou a achar normal que homens façam comentários sobre os atributos físicos de uma mulher ou o seu modo de se vestir, temos a legitimação de práticas que alimentam essa cultura do estupro.
Desse modo, os movimentos que trazem essa discussão buscam deixar claro que estupro é crime hediondo, e assim deve ser tratado. Quem o pratica não é um monstro, é um homem comum, que usa o sexo forçado como uma forma de marcar sua posição de poder e explicitar o caráter inferior que atribui à mulher. Não há justificativas para a barbárie e a culpabilizar a vítima é mais uma forma de violência praticada contra ela.
Referências:
BROWNMILLER, Suzan. “Against our will: men, women and rape”. New York: Fawcett Columbine, 1975.
CAMPOS, Andrea Almeida. “A cultura do estupro como método perverso de controle nas sociedades patriarcais”. Revista Espaço Acadêmico. nº 183, agosto/2016.
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/32937/17062
CAMPOS, Carmen Hein de; MACHADO, Lia Zanotta; NUNES, Jordana Klein; SILVA, Alexandra dos Reis. “Cultura do estupro ou cultura antiestupro?”. Revista Direito GV. vol. 13. nº 03. São Paulo. set/dez. 2007.
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322017000300981&script=sci_arttext
MACHADO, Lia Zanotta. “Masculinidade, sexualidade e estupro: as construções da virilidade”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 231-273, 1998.
ROST, Mariana. “Convenções de gênero e violência sexual: a cultura do estupro no ciberespaço. Contemporânea: Revista de Comunicação e Cultura. vol. 13. nº 2, 20015.
https://cienciasmedicasbiologicas.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/13881/9878
ROST, Mariana. “Texto para divulgação”. “As atualizações e a persistência da cultura do estupro no Brasil”. Brasília: IPEA, 2017.
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8088/1/td_2339.PDF