As origens do conflito entre Rússia e Ucrânia
Ao longo de sua história, a Ucrânia se constituiu como um território marcado por diversas culturas e etnias, estando envolvida em diversas guerras e vendo as suas fronteiras serem alteradas muitas vezes. Os principais povos que vivem em seu território são os ucranianos, os russos e os bielorrussos, todos originários da Rus Kievana, um grupo de tribos eslavas orientais e vikings que viveu entre os séculos IX e XIII e ocupou um território que se estendia do Mar Báltico, ao norte, até o Mar Negro, no sul.
Muitos séculos de guerras e revoltas se passaram e aquela região esteve nas mãos de diferentes impérios até a criação da União Soviética, em 1922, e o reconhecimento da Ucrânia como a segunda república mais importante do território e como o principal polo industrial, científico e econômico da região.
Contando com as terras mais férteis da Europa, a Ucrânia se tornou o celeiro da União Soviética e, a partir de 1933, se deparou com o confisco de sua produção agrícola, com a proibição da caça, da pesca e da coleta de frutas, o que provocou a morte de mais de 3,5 milhões de pessoas por inanição e fez com que as proibições empreendidas por Josef Stalin fossem classificadas como um genocídio, em uma ação que ficou conhecida como “holocausto ucraniano” ou “Holodomor”.
Com o fim da União Soviética, em 1991, a Ucrânia se tornou um Estado independente, mas a Rússia nunca deixou de querer manter a sua influência sobre esse território. A presença russa em solo ucraniano é muito grande. Cerca de 25 milhões dos habitantes do país falam russo e mais de 10 milhões são originários da Rússia e vivem nas regiões leste e sul da Ucrânia, exatamente na parte do território que faz fronteira com a Rússia.
Em março de 2014, a Rússia anexou a Península da Crimeia ao seu território. 70% da população daquela região é de origem russa. A Crimeia é uma região estratégica, localizada no norte do Mar Negro. No século XVIII, ela havia sido anexada pelo Império Russo, mas, em 1954, foi devolvida à Ucrânia pelo primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev, com o objetivo de marcar os trezentos anos da reunificação da Rússia com a Ucrânia.
A tensão entre os dois países, entretanto, não diminuiu e a Crimeia continuou sendo objeto de disputa. Em 1992, os presidentes da Rússia, Boris Yeltsin, e da Ucrânia, Leonid Kravchuk, assinaram um acordo para que nenhum dos dois países entrassem em disputas territoriais. Os ucranianos, no entanto, seguiram buscando formas de garantir a sua soberania sobre o local. Desde 1994, a Crimeia passou a ter certa autonomia em relação ao governo ucraniano, chegando a estabelecer uma cidadania própria.
Todo esse processo de disputa seguiu ao longo dos anos e culminou na anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, o que fez com que os Estados Unidos e a União Europeia impusessem sanções contra a Rússia, já que a ação foi vista como ilegal por grande parte da comunidade internacional.
A Crimeia é uma região estratégica para russos, ucranianos e americanos. Desse modo, a tensão entre os países tornou-se ainda maior. A região tem águas quentes e permite a conexão entre os mares Negro e Azov, sendo uma importante rota marítima, já que ali não ocorre o congelamento das águas e permite a navegação ao longo de todo o ano.
A partir disso, instaurou-se uma crise ainda mais intensa entre a Rússia e a Ucrânia e a possibilidade de um conflito maior paira sobre o ar desde então. Conforme Rafael Raza, especialista em geoestratégia e segurança internacional, há uma gama de fatores que movem esse conflito, questões de energia e tecnologia, aspectos relacionados à identidade cultural da população ucraniana, questões políticas e interesses econômicos.
A Rússia quer manter a sua influência sobre a Ucrânia e conseguiu isso durante décadas após o fim da União Soviética. Em 1994, através do Memorando de Budapeste, a Ucrânia se desfez do seu arsenal nuclear e contou com o apoio da Rússia, dos Estados Unidos e do Reino Unido para garantir a sua segurança contra ameaças territoriais ou a sua independência política.
A Ucrânia permitiu que a Rússia mantivesse instalações navais em seu território, inclusive no Porto de Sevastopol, na Crimeia, região fundamental para os russos por permitir o acesso ao Mar Mediterrâneo através de Istambul.
Apesar desses acordos, ao longo dos anos de 1990, alguns conflitos entre os dois países foram se intensificando, surgiu uma disputa entre eles em torno da produção de gás natural, por exemplo. Essa tensão se agravou com a “Revolução Laranja”, ocorrida na Ucrânia, em 2004, na qual Viktor Yushchenko foi eleito presidente, em vez do candidato pró-Rússia Viktor Yanukovych.
De acordo com Dominique Arel, a Revolução Laranja despertou em uma parcela dos ucranianos um sentimento nacionalista mais forte, fazendo com que a região ocidental do país construísse uma identidade nacional mais coesa, diferente do que ocorria no sul e no leste em que a mistura de russos e ucranianos é mais intensa. Para Arel, esse sentimento foi determinante para que os rumos políticos da Ucrânia passassem a ser ditados pela região central do país e uma forte polarização passou a marcar o cenário político do país.
A partir de 2004, a Rússia percebeu que começava a perder a força de sua influência no território ucraniano. Isso se tornou mais evidente quando a Ucrânia passou a cooperar mais com a Otan, o que aumentou a tensão com os russos, já que havia um acordo verbal entre Estados Unidos e Rússia de que a Otan não “se moveria nem uma polegada para o leste” além da Alemanha.
A aproximação entre a Otan e países do Leste Europeu incomodou muito o governo russo. A situação se tornou menos tensa quando, em 2010, Viktor Yanukovych foi eleito na Ucrânia. Ele era visto como pró-Rússia e autorizou a presença de tropas russas na região e permitiu que militares fizessem treinamentos na república de Kerch. Suas ações, no entanto, foram consideradas inconstitucionais e geraram mais conflitos políticos no país, que foram ainda mais intensificados quando Yanykovych se recusou a assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia, desencadeando protestos que levaram multidões de ucranianos às ruas e culminaram no impeachment e fuga do presidente.
Foi nesse contexto que, em 18 de março de 2014, a Crimeia foi definitivamente anexada à Rússia, embora a Ucrânia não reconheça a perda do território e mova uma ação na Corte Internacional de Justiça contra a Rússia, acusando-a de financiamento do terrorismo e de discriminação racial.
A anexação da Crimeia fez com que a popularidade de Vladimir Putin disparasse dentro da Rússia, as sanções econômicas que o país passou a sofrer depois disso, entretanto, provocaram uma forte crise econômica. Putin passou a acusar os Estados Unidos de conspirar com a Arábia Saudita para diminuir o preço do petróleo e enfraquecer ainda mais a economia russa.
A crise econômica e a tensão política reduziram a popularidade de Vladimir Putin e as ações na Ucrânia são vistas por alguns especialistas como uma forma de tentar reverter essa situação. Desde março de 2021, a Rússia passou a enviar milhares de soldados e armamentos para a fronteira com a Ucrânia e a ameaça de um conflito bélico foi se tornando cada vez mais constante.
O governo russo passou a exigir que a Ucrânia não ingresse na Otan e que a organização exclua os países do leste europeu que nela ingressaram após 1997. Além disso, exige que a Otan retire suas tropas da Europa Oriental. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, não quer abrir mão da participação ucraniana na Otan. Segundo ele, essa seria uma garantia de segurança ao país e à Europa como um todo.
O conflito piorou depois que Putin reconheceu a soberania de Donetsk e Luhansk e enviou militares russos para aquela região usando o argumento de que estaria buscando uma pacificação da área. As ações do governo russo foram consideradas violações do direito internacional e foram totalmente repudiadas pelos Estados Unidos, Reino Unido, França e pela ONU.
Com a invasão da Ucrânia, o conflito chegou ao ápice. Inicialmente, a Rússia realizou ataques cibernéticos, depois mandou mísseis e promoveu a neutralização dos sistemas de defesa antiaérea e das bases militares ucranianas. Em seguida, as tropas russas adentraram o território ucraniano, bombardeando as principais cidades ucranianas, inclusive Kiev, a sua capital.
As ações de Putin fizeram com que a Rússia sofresse ainda mais sanções, o que pode provocar um colapso em sua economia. Os Estados Unidos já começaram a enviar mais tropas para o Leste Europeu e os desdobramentos desse conflito preocupam o mundo inteiro. Com uma população de mais de 44 milhões de pessoas, a comunidade internacional prevê que se a guerra avançar, a Europa viverá a maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial.
Especialistas preveem que a situação não chegará ao extremo, pois o poder bélico da Rússia coloca em risco toda a região. Sendo assim, a paz no continente europeu estaria totalmente ameaçada e as perdas provocadas por um confronto bélico de grandes proporções seriam muito maiores que os ganhos de qualquer país que encampasse uma guerra nessas proporções.
A hipótese de uma guerra nuclear é descartada pela maioria dos especialistas, pois o risco de destruição mútua ou de se conquistar um território inútil, completamente degradado pela radiação, é muito grande. Desse modo, embora a ameaça fique rondando o cenário de guerra, não seria racional chegar a esse ponto.
Segundo Carl von Clausewitz, a essência da guerra “é um ato de força para submeter o oponente à nossa vontade”. Até o momento, essa é a estratégia de Vladimir Putin: submeter a Ucrânia à sua vontade, resta saber quais serão os desdobramentos dessa estratégia no desenrolar desse conflito.
Referências:
AREL, Dominique. The hidden face of the Orange Revolution: Ukraine in deniel towards its regional problem. Otawa: Nationalities Papers, 2006.
LACOSTE, Yves. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1997.
MAZAT, Numa. Uma análise estrutural da vulnerabilidade externa econômica e geopolítica da Rússia. Tese (Doutorado em Economia Política Internacional). Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
MIELNICZUK, Fabiano. A Identidade como Fonte de Conflito: A Relação entre Ucrânia e Rússia no Pós-URSS. Dissertação de Mestrado. IRI/PUC-Rio, 2004.
POTY, Italo Barreto. Uma análise histórica e geopolítica da Ucrânia no pós-Guerra Fria sob o prisma da longa duração. Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.