“A revolução dos bichos”: uma análise dos abusos cometidos por quem ocupa o poder
“Animal Farm: a fairy story” foi publicado por George Orwell em 1945 e se tornou um grande sucesso em diferentes lugares do mundo. No Brasil, ele foi publicado em 1964, momento em que o golpe militar acabava de ser dado e o “perigo comunista” era o grande inimigo.
Nesse contexto, o livro de Orwell foi traduzido pelo tenente Heitor Aquino Ferreira, secretário do general Golbery do Couto e Silva. Ele integrava uma instituição chamada IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e encontrou em “Animal Farm” uma potente arma anticomunista, já que o livro poderia ser lido como uma sátira ao comunismo soviético.
A escolha da palavra “revolução” no título contribuiu para o impacto da obra aqui e foi desse modo que diferentes gerações de leitores a conheceram. Em 2020, Paulo Henriques Britto lançou uma nova tradução intitulada “A fazenda dos animais”, mas foi com o primeiro título que a obra foi eternizada.
Há diversas interpretações para o que Orwell pretendia com esse livro, especialmente quando se leva em conta o contexto histórico no qual ele foi produzido. A principal interpretação dado ao livro é de que ele seria uma crítica à Revolução Russa e ao modo como ela transformou o Socialismo em um regime autoritário. A crítica do autor não era em relação ao regime socialista, mas ao modo como o totalitarismo deturpou seus ideais.
O enredo criado por George Orwell nos permite refletir sobre o poder e sobre o modo como se estabelece a relação entre aqueles que assumem o poder e o resto da sociedade.
A história tem início quando o Major, um porco já no fim da vida, reúne os animais da Granja Solar para contar-lhes sobre um sonho que teve no qual os bichos fariam uma rebelião e não seriam mais oprimidos pelos humanos. Para ele, seria possível a união de todos os animais, que conviveriam de forma harmoniosa e igualitária, em que cada um desempenharia o seu papel na construção de uma sociedade justa.
A partir desse impulso dado pelo Major, os animais, liderados pelos porcos, expulsam o Sr. Jones da propriedade e passam a administrar o local, implantando ali o que chamam de “Animalismo”, sistema norteado pelos seguintes princípios: “qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo; qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo; nenhum animal usará roupas; nenhum animal dormirá em cama; nenhum animal beberá álcool, e nenhum animal matará outro animal”.
Em um primeiro momento, tudo funciona bem e os animais conseguem viver em harmonia, livres da exploração humana e gozando de boas condições de vida. Com o passar do tempo, entretanto, os porcos, que eram considerados superiores, passam a se aproveitar do poder que lhes era dado. Assim, os mandamentos começam a ser burlados por eles e a busca por privilégios se torna uma prática. A justificativa para obter mais comida e conforto é a de que o trabalho intelectual demanda mais energia.
Desse modo, fazendo uso de um discurso manipulador, os porcos distorcem os ideais da Revolução, passam a viver na casa do Sr. Jones e a assumir a mesma postura de exploração que ele tinha.
Enquanto os porcos se aproveitam cada vez mais dos privilégios que afirmam merecer ter, os outros animais seguem, em um primeiro momento, alienados, agindo como se não percebessem que estão sendo manipulados e explorados novamente. Quando eles começam a ter consciência do que está acontecendo, passam a ser ameaçados por cães que estavam a serviço de Napoleão, o líder dos porcos, sendo oprimidos e obrigados a aceitarem os desmandos do líder.
Observando o desenvolvimento do enredo do livro fica claro que a obra não é uma crítica ao Socialismo em si, mas ao totalitarismo, mostrando como líderes manipuladores distorceram os ideais socialistas e implantaram ditaduras cruéis que favoreciam apenas aqueles que ocupavam o poder.
O comportamento dos porcos incomoda justamente porque é um comportamento típico dos seres humanos, que, frequentemente, agem em benefício próprio, sem se importarem com os outros. A obra é, ao mesmo tempo uma fábula e uma sátira política, que traduz com maestria o modo como muitos líderes políticos agiam.
Ao subverter os princípios do Animalismo ao seu favor, Napoleão se torna um tirano, reproduzindo o ciclo de exploração que marcara toda a vida dos animais. Quando reduz os mandamentos a apenas um: “Todos animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”, o tirano reafirma como o desejo de poder faz com que os interesses coletivos sejam colocados em segundo plano e os líderes sigam reproduzindo e perpetuando modelos de exploração que trazem vantagens apenas a eles mesmos.
“A Revolução dos bichos” é uma obra que trata de questões ainda muito presentes nos dias de hoje, ultrapassando o contexto histórico ao qual se refere e se tornando atemporal. A partir de sua leitura, podemos refletir sobre a exploração do trabalho, as desigualdades sociais, os privilégios que marcam a vida de uma pequena parcela da população detentora do poder, a deturpação dos ideais, a manipulação das massas, a repressão do Estado, a concentração do poder e a violação de direitos como uma forma de se manter no poder. É uma leitura fundamental para compreender o jogo político que move a história desde sempre.
Referências:
https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/article/view/3028
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. Tradução: Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Globo, 2003.
SILVA. Liliam Mara Rodrigues. Estudo de graus de politização na tradução: Animal Farm em vários contextos. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2007