O que é lugar de fala: um espaço de legitimação ou interdição do dizer?
“Quem pode falar? Quem não pode? E acima de tudo, sobre o que podemos falar”? Esses questionamentos de Grada Kilomba podem servir de ponto de partida para refletirmos sobre o conceito de lugar de fala, um tema que gera muitas controvérsias e faz com que o conceito seja amplamente defendido por um grupo e terminantemente condenado por outro.
Nos últimos anos, o lugar de fala tem tomado conta de muitas discussões, principalmente nas redes sociais e, muitas vezes, acaba sendo usado como uma forma de encerrar o debate, como se aquele que tomou a palavra não tivesse direito de fazer uso dela por não pertencer a determinado grupo social.
Esse tipo de postura, na verdade, é um equívoco que faz com que o conceito seja tratado de maneira distorcida e os debates não avancem.
O termo se popularizou no Brasil em 2017, a partir do livro “O que é lugar de fala?”, da filósofa Djamila Ribeiro. Em sua obra, a autora deixa claro que fala a partir da perspectiva do feminismo negro e toma como referencial teórico trabalhos de Truth, Gages, bell hooks, Audre Lorde, Giovana Xavier, Lélia Gonzalez, Linda Alcoff, dentre outras mulheres que buscaram em suas obras romper com a invisibilidade na qual a mulher negra era colocada.
Para Ribeiro, lugar de fala é o ponto de vista discursivo a partir do qual “corpos subalternizados” passam a reivindicar a sua existência. Assim, é fundamental que se perceba que seres humanos diferentes partem de lugares diferentes ao proferirem um discurso. Todas as pessoas têm um lugar de fala e podem fazer uso dele em qualquer situação, entretanto, é preciso ter clareza acerca de qual é o grupo social a partir do qual um indivíduo fala ao tomar a palavra e lembrar-se de que esse lugar social será determinante para o modo como o seu discurso será compreendido.
Embora o termo seja relativamente recente, conceitos da Análise do Discurso já tocam nessa questão há bastante tempo. Conforme Foucault, o discurso é “o lugar do poder”, desse modo, é através dele que os sujeitos se constituem e se constroem historicamente.
Ao tratar da noção de lugar de fala, é fundamental que se compreenda que esse conceito não determina a interdição do discurso do outro, ele apenas explicita a necessidade de termos consciência de que cada indivíduo ocupa uma posição discursiva diferente e que essa posição interfere no modo como o seu discurso é compreendido e aceito socialmente.
Todo sujeito está inscrito em um determinado contexto discursivo, assim, sua fala é atravessada por aspectos sociais, étnicos, econômicos, históricos, e a aceitação ou não do seu discurso passa por esses aspectos. Conforme Patricia Hill, o lugar social ocupado por certos grupos restringe as suas oportunidades, sendo assim, o seu dizer terá um alcance menor e a probabilidade de que o seu discurso seja calado é bem maior do que se esse enunciador ocupasse um espaço de poder social.
Ao tratar dessa questão, Djamila Ribeiro diz que qualquer pessoa pode falar sobre qualquer tema, mas, ao refletir sobre o racismo, por exemplo, é fundamental que um homem branco entenda que ele o faz de uma posição completamente diferente daquela ocupada por uma mulher negra. Segundo a autora, o lugar de fala de um homem branco é o lugar do privilegiado, de quem se beneficiou de uma estrutura racista, portanto, sua fala jamais será equivalente à da mulher negra e ele nem deve esperar que seja, já que é impossível falar no lugar do outro.
São afirmações desse tipo que acabam fazendo com que o conceito de lugar de fala seja criticado por muita gente. Ao ser evocado para tratar de questões relativas a minorias, ele acabou ficando colado em outros dois conceitos que têm gerado discussões calorosas: identitarismo e representatividade. Há uma parcela da sociedade que vê o discurso identitário como uma forma de se impor como único representante autorizado a abordar determinados temas. Desse modo, o dizer daqueles que não pertencem a determinado grupo estaria impedido simplesmente porque ele ocupa outra posição discursiva que não o autoriza a se posicionar sobre uma realidade que não vive na própria pele. Essa visão faz com que o lugar de fala se transforme em “lugar de cale-se”, desautorizando o discurso de quem não se insere naquele grupo.
Djamila Ribeiro discorda dessa interpretação e enfatiza que o conceito não prevê a proibição do discurso do outro, apenas mostra a necessidade de se saber de que lugar cada indivíduo fala e de se reconhecer que as minorias podem falar por elas próprias, sem que seja necessário que outros grupos falem em nome delas.
Focault afirma que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação”, ele é o porquê e o pelo que se luta, é o poder do qual queremos nos apoderar. Assim, aqueles que historicamente tiveram o seu dizer interditado, tiveram a sua voz silenciada, buscam ocupar os espaços que lhe foram negados, fazendo uso da palavra por si próprios, sem necessitar da chancela de outros grupos privilegiados para que o seu discurso possa ser validado.
É inegável que todo discurso é situado e traz consigo marcas que definem a posição social de quem fala. A noção de lugar de fala parte desse princípio, as interpretações decorrentes disso, no entanto, acabam gerando uma discussão que distorce o conceito e, em algumas ocasiões, inviabiliza o debate, já que além de lugar de fala, é preciso ter também “lugar de escuta”, pois o processo discursivo se constitui através de uma relação dialógica, que acaba sendo interrompida quando nos recusamos a ouvir o que o outro tem a dizer.
Referências:
FOUCAULT, Michel. “A ordem do discurso”. 19. ed. São Paulo: Loyola, 2009.
KILOMBA, Grada. “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
RIBEIRO, D. “O que é: lugar de fala?”. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
SPIVAK, G. “Pode o subalterno Falar?”. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.