Literatura

Machado de Assis: um escritor afro-brasileiro?

Machado de Assis morreu no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908. Considerado um dos maiores autores da língua portuguesa, ele segue até hoje despertando intensos debates acerca de sua vida e de sua obra. Dentre esses debates, há uma longa discussão sobre a cor de Machado de Assis e o embranquecimento pelo qual passou ao longo dos anos.

Em seu atestado de óbito, embora não fosse obrigatório, o escrivão fez questão de destacar que a sua cor era branca, mesmo sem nunca Machado de Assis ter declarado publicamente que era assim que se via.

Atestado de óbito de Machado de Assis, no qual se afirma que ele era branco

Nascido no Rio de Janeiro em 1839, ele era filho de uma lavadeira açoriana branca e de um mestiço pintor de paredes, cuja mãe havia sido escravizada. Machado de Assis era, portanto, afrodescendente, como grande parte da população brasileira é.

Ele fez carreira como funcionário público e se casou uma portuguesa, Carolina Augusta Xavier de Morais. Desde muito cedo, passou a escrever em jornais, estabelecendo contato com a elite branca da época. É importante dizer que era para essa elite que ele escrevia, já que a maior parte da população brasileira sequer era alfabetizada.

Tanto na época em que produziu sua obra, quanto agora, são frequentes os questionamentos do porquê ele não assumiu uma militância em torno da questão do negro no Brasil, posicionando-se explicitamente contra a escravidão, encampando o movimento abolicionista, criando protagonistas negros.

Missa Campal de 17 de maio de 1888, na qual Machado de Assis aparece próximo à Princesa Isabel

Para o professor Eduardo de Assis Duarte, a resposta a esses questionamentos está na própria obra machadiana e no estilo que o consagrou como um dos maiores de nossos escritores. Machado de Assis não criou heróis em seus romances, o que ele apresenta são anti-heróis, que lhe permitirão justamente fazer uma crítica à elite branca de sua época. Brás Cubas é caracterizado como um canalha, uma criança que cresceu sem limites e um adulto sem escrúpulos. Bentinho é um fracassado, alguém totalmente fantasioso, inseguro e dependente. Seus dois mais famosos protagonistas são construídos a partir das falhas de caráter que marcavam o tempo no qual ele viveu. Através do humor, da ironia e de um olhar ácido para a hipocrisia que moldava as relações sociais, Machado de Assis vai desmascarando essa elite, que escondia atrás de máscaras, porém era movida por relações por interesse e pela corrupção.

Negar as origens de Machado de Assis é uma forma de tentar apagar o fato de que um de nossos maiores escritores é afrodescendente. Negar que sua obra discute a questão do negro é mais uma forma de dizer que o próprio autor renegou suas origens, quando, na verdade, a temática negra foi abordada em contos, crônicas, crítica teatral e romances. Não de modo panfletário, não em tom de militância, mas através do olhar crítico e irônico que marcou toda a sua obra. Para Duarte, compreender o lugar social do qual fala Machado de Assis é o caminho para entender a obra machadiana.

Última foto de Machado de Assis, publicada na revista “Caras y Caretas”, em 25 de janeiro de 1908

Para ilustrar como o olhar crítico à escravidão está presente em seus escritos, podemos citar o conto “Pai contra mãe”, no qual Cândido Neves, um caçador de escravos foragido, vive o dilema de ter que entregar seu bebê para adoção por não ter condições de sustentá-lo, entretanto, não hesita em capturar uma escrava fugida que lhe implora por sua liberdade e sofre um aborto na sua frente, justamente por causa da violência a que fora submetida. Cândido Neves recupera seu filho com o dinheiro que recebe pela captura, enquanto olha com indiferença a perda da escrava, afirmando que “Nem todas as crianças vingam”. Para denunciar a escravidão, Machado de Assis não precisa gritar em praça pública ou produzir uma narrativa panfletária, basta narrar histórias como essa e, com sua fina ironia, com seu olhar crítico para as misérias que marcam a humanidade, mostrar as mazelas da sociedade de sua época. 

Caixão com o corpo de Machado de Assis deixa a Academia Brasileira de Letras, em 1908.

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Referências

DUARTE, Eduardo de Assis. Seleção, notas, ensaios. “Machado de Assis afrodescendente”. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2020.

MAGALHÃES JR., Raimundo. “Machado de Assis desconhecido”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971.

VIEIRA, Andressa dos Santos. “O negro em Machado de Assis: escritos da escravidão”. Dissertação de Mestrado. Vitória: UFES, 2019. http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_13490_PPGL.Andressa%20dos%20Santos%20Vieira.pdf

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