A história da morte – como o homem ocidental encarou a morte ao longo de sua trajetória
“Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”. Essa citação de Ariano Suassuna nos faz lembrar que a morte é inevitável, não há como dela escapar. Embora todos tenhamos consciência disso, o modo como se lida com esse fato varia conforme a cultura, a religião e a época considerada.
No Oriente, a morte é encarada com mais naturalidade, ela é vista como um estado de transição e de evolução. Já no Ocidente, é encarada como um fim, uma ruptura, algo sombrio, que deve ser deixado distante da nossa vista.
A morte é uma experiência humana universal, mas a maneira como as pessoas a encaram passou por uma série de transformações ao longo do tempo. Estudos arqueológicos indicam que as culturas primitivas já dispunham de rituais em relação aos mortos. Na cultura grega, romana e egípcia diversos são os ritos fúnebres e os registros do modo como o fim da vida era tratado. Da mesma maneira que cada povo tem seus mitos para explicar a origem da vida, há uma grande variedade de histórias que tratam acerca do seu fim e nos mostram como diferentes povos e diferentes épocas abordaram essa questão.
Na literatura, inúmeros são os exemplos de obras que tocam nessa temática. No Romantismo, o culto da morte estava diretamente ligado à ideia de escapismo, como se morrer fosse uma forma de fugir dos problemas da vida. Na poesia simbolista, a morte era o caminho para alcançar a espiritualidade, liberar a alma que sofria os tormentos provocados pelo fim do século. Na poesia de Augusto dos Anjos, morrer é um fenômeno biológico, através do qual o corpo sem vida vai sendo roído por um verme. Na obra de Manuel Bandeira, “a indesejada da gente” está sempre à espreita, esperando o momento certo de aparecer. Em “As intermitências da morte”, de José Saramago, vemos como seria absurdo viver em um mundo no qual não se morre. Exemplos como esses nos mostram como esse tema está presente nas mais variadas esferas e como a concepção de morte e a maneira como a encaramos muda em função das visões de mundo vigentes, das crenças religiosas, da época, da cultura, do lugar onde se vive.
De acordo com Philippe Ariès, a morte na Idade Média era menos ocultada que na Idade Moderna. Para ele, na sociedade medieval havia uma “morte domada”, os doentes sabiam que iam morrer e já iniciavam em vida os rituais de despedida. Assim, as pessoas morriam de forma mais calma e serena, pois tinham consciência de que o fim era inevitável. Na sociedade moderna, passa-se a temer a morte não apenas de si mesmo, mas também a morte do outro. Desse modo, o culto aos mortos e aos cemitérios vai ganhando espaço e a influência religiosa é determinante para as reações diante da hora derradeira.
Conforme Ariès, no mundo moderno teríamos passado para a “morte invertida”, assim, o acontecimento social teria se transformado em um acontecimento privado, no qual as suas evidências deveriam ser apagadas do cotidiano.
Norbert Elias defende a ideia de que as sociedades antigas tinham uma concepção mitologizada da morte, o que era sustentado pela crença de que existiria uma outra vida em locais como o Hades, o Inferno ou o Paraíso. No mundo pós-moderno, essa visão sobre o que viria depois da morte é muito influenciada pela religião, mas o modo como lidamos com o fim é, na maior parte das vezes, um tabu. Para Elias, essa necessidade de manter a morte distante da vida social está diretamente ligada ao desejo que o ser humano tem de alcançar a imortalidade e de querer apagar qualquer evidência de sua finitude.
Apesar de estar frequentemente escancarada por causa do cotidiano violento que encaramos diariamente, a morte é tratada como um assunto interditado, marcado pelo medo, pela tristeza e pelo sofrimento e que, portanto, deve ser evitado o máximo possível.
Os avanços da medicina permitiram uma longevidade maior, o que também contribuiu para essa mudança de perspectiva em relação à morte, não só porque agora ela passa por um processo de medicalização que faz de tudo para evitá-la como também porque, na maior parte das vezes, as pessoas morrem em hospitais que tentam até o último instante prolongar as suas vidas. Os rituais fúnebres também passam a ser terceirizados e empresas funerárias cuidam de todo o processo, tirando das famílias o ritual de preparar o corpo, vesti-lo e velá-lo em suas casas.
Em seu “Sermão de Quarta-feira de Cinza”, Padre Antonio Vieira dizia que “saber morrer é a maior façanha”, no entanto, a sociedade pós-moderna parece não querer aprender a lidar com essa façanha, há uma preocupação muito maior com a busca de formas de prolongar a vida do que com a preparação para encarar com serenidade esse mal irremediável.
Referências:
ARIÈS, Philippe. “Ahistória da morte no ocidente: da idade média aos nossos dias”. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
ELIAS, Norbert. “A solidão dos moribundos: seguido de envelhecer e morrer”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BAYARD, Jean Pierre. “Sentido oculto dos ritos mortuários: morrer é morrer?” São Paulo: Paulus, 1996.