Literatura

A paixão secreta que Manuel Bandeira nutria por Clarice Lispector

Entre olhares e poesia: o encontro de Clarice Lispector e Manuel Bandeira

A força de um olhar sempre foi uma presença constante na literatura. Quem não se lembra dos “olhos de ressaca” ou de “cigana oblíqua e dissimulada” de Capitu? Quem nunca esbarrou nos versos de Gonçalves Dias: “São uns olhos verdes, verdes,/ Uns olhos de verde-mar,/ Quando o tempo vai bonança; / Uns olhos cor de esperança”? Quem nunca se deixou levar “pela luz dos olhos teus” da canção de Vinicius de Moraes”? Pois foi assim, encantado pela força de um olhar, que Manuel Bandeira cruzou com Clarice Lispector num dia tristonho e melancólico em que se lamentava por causa de uma desilusão amorosa.

Foi assim também que os olhos tão frequentes na literatura saltaram para a vida real e, posteriormente, voltaram para a literatura através da crônica “O poeta e os olhos da moça”, escrita por Rubem Braga a partir do relato que Manuel Bandeira lhe fez dessa história.

Publicada pela primeira vez em 1952, a crônica de Rubem Braga conta a história de Maria, uma moça de olhos de piscina que encantou um poeta. Só muitos anos depois, após a morte de Clarice Lispector e Manuel Bandeira, é que Rubem Braga revelou que os personagens da crônica eram os dois grandes autores da literatura brasileira e reescreveu o final do texto, acrescentando-lhe: “Foi há muito tempo que escrevi essa história, há quase 30 anos. Na ocasião eu não quis dizer o nome dos personagens. Hoje ambos estão mortos. O poeta era Manuel Bandeira, a moça noiva (Maria) era Clarice Lispector”.

 Clarice Lispector e Manuel Bandeira foram padrinhos de casamento de Lauro Moreira e Marly de Oliveira

Através de Rubem Braga ficamos sabendo que, ao sair do Praia Bar, no Flamengo, Manuel Bandeira encontra Clarice Lispector passeando com seu noivo Maury Gurgel Valente. Diante dos olhos de Clarice, assim afirma o poeta: “eu só via aqueles olhos verdes – e me recebeu como se fosse uma piscina”. Mas a moça passou com “alma distraída e feliz de moça que passeia com o noivo”.

Essa história deu origem a uma bela crônica escrita por Rubem Braga, na qual ele narra esse encontro e o encantamento produzido pelo olhar de Clarice em Bandeira, despertando-lhe o desejo de escrever um poema capaz de retratar aquele momento. O olhar marcante de Clarice Lispector cruzou com Manuel Bandeira justamente em um momento em que ele era consumido por uma tristeza provocada por outra mulher e foi poeticamente registrado na crônica de Rubem Braga, o qual relatou mais tarde ter contado a história à Clarice, ela, porém, não se lembrava do encontro e ficou olhando admirada para o cronista “com seus olhos de piscina”.

Caio Fernando de Abreu também relata em uma carta a Hilda Hilst a força do olhar de Clarice, definindo seus olhos como “hipnóticos, quase diabólicos”. A própria autora afirma em um de seus textos: “O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber”. O olhar misterioso, a personalidade discreta e reservada, a escrita enigmática, são traços marcantes em Clarice Lispector e dão o tom de sua obra, tornando tanto a sua figura quanto os seus escritos um verdadeiro enigma a ser decifrado, despertando encantamentos como o de Manuel Bandeira ou de Caio Fernando de Abreu, produzindo homenagens como a da artista Katia Wille, cuja exposição “Maria dos olhos de piscina”, foi inspirada na crônica de Rubem Braga e no olhar de Clarice, levando Caetano Veloso a se questionar em sua música “Que mistérios tem Clarice?” e produzindo uma legião de leitores apaixonados, os quais mergulham não em seus olhos de piscina, mas num turbilhão de emoções produzidos por seus textos e que nos levam a refletir sobre a própria vida.

Referências:

GOTLIB, Nádia Battela. “Clarice: uma vida que se conta”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

GOTLIB, Nádia Battlea. “Clarice Fotobiografia”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

PEREIRA, Aline Brustello. “Os labirintos fantásticos de Clarice Lispector e Alice Munro”. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2012.

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