Literatura

“O cemitério dos vivos”: Como era um hospício, no início do Século XX

Nascido no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto teve sua vida marcada pelo preconceito racial e social, pela luta contra a discriminação e por uma batalha pessoal contra a loucura, que já havia vitimado seu pai, e acabou levando o escritor a duas internações no Hospício Nacional de Alienados, em função de sua dependência por bebidas alcóolicas.

Em suas obras, escreveu sobre os moradores dos subúrbios cariocas, sobre o preconceito racial e as desigualdades que marcavam o Brasil no início do século XX, dando voz a personagens marginalizados que não apareciam nas páginas da literatura brasileira daquela época.

Morreu sem ter o reconhecimento almejado e buscou na bebida uma forma de aliviar as desilusões de uma vida marcada pela discriminação racial e exclusão social. O alcoolismo o levou a ser internado duas vezes no Manicômio Nacional e dessa experiência resultou duas de suas obras “O cemitério dos vivos” e “O diário do hospício”. Destacou-se também na produção de contos, crônicas e produziu romances importantes como “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Clara dos Anjos” e “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, obras ficcionais, mas que dialogam com a trajetória e os dilemas vividos pelo escritor que chegara a desabafar em seu Diário: “É triste não ser branco”, explicitando claramente o preconceito vivido por ele e por diversos dos personagens aos quais ele deu vida nas páginas de seus livros.

Em seu romance inacabado “O cemitério dos vivos”, Lima Barreto explora a loucura a partir de sua experiência de internação no Hospital Nacional de Alienados no Rio de Janeiro, entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de 1920. Ele também registrou essa experiência nos dez capítulos de “O diário do hospício”. Confinado em um ambiente com pessoas com as mais diversas doenças mentais, Lima Barreto traça um panorama desse lugar e de toda a perturbação mental que ele sentia ao se ver ali. Como se pode ver em um fragmento de “Diário do hospício”, o autor vivia um turbilhão de emoções dentro do manicômio: “Voltei do café entediado. Um vago desejo de morte de aniquilamento. Via minha vida esgotar-se, sem fulgor, e toda a minha canseira feita, às guinadas. Eu quisera a resplandecência da glória e vivia ameaçado de acabar numa turva, polar loucura”.

Mesmo confinado naquele lugar e tomado de toda a instabilidade emocional que a situação lhe trazia, Lima Barreto se ancora na literatura para tentar lidar com o que vive. Cervantes, Balzac e Dostoievski são evocados pelo autor para examinar situações enfrentadas no período que passa enclausurado. A literatura como forma de salvação está presente em sua escrita. Ao mesmo tempo, ela também é uma forma de perdição, já que as decepções por não ter a sua obra devidamente reconhecida o levavam para o alcoolismo e, consequentemente, para o manicômio.

Nos cinco capítulos de “O cemitério dos vivos”, Lima Barreto dá voz ao narrador-personagem Vicente Mascarenhas para falar das suas próprias experiências vividas no hospício. Escrever para buscar a si mesmo, esse parece ser o caminho encontrado pelo autor para lidar com seus fantasmas e suportar o ambiente em que se vê inserido.

O alcoolismo o levou à internação, mas, apesar da instabilidade emocional de alguns momentos, Lima Barreto olha com lucidez para o que ocorre ao seu redor e, como já exprime no título de seu livro, estar confinado em um sanatório é como estar morto em vida:  “Todos eles estão na mão de um poder que é mais forte do que a Morte. A esta, dizem, vence o amor, a Loucura, porém, nem ele” (LIMA BARRETO, p. 21).

A voz da loucura expressa através de seu personagem é a voz do próprio autor que tenta se fazer ouvir. Essa voz, entretanto, é solitária. O silenciamento daqueles que são considerados loucos ou que apresentam algum distúrbio mental é frequente, o estigma de ter passado por um manicômio permanece gravado no corpo de quem passa por isso. E, no caso de Lima Barreto, o estigma de sua cor também o persegue, impedindo-o de alcançar o sucesso com o qual ele tanto sonhava e levando-o a uma vida marcada por amarguras e decepções.

Morreu aos 41 anos, consumido pela bebida e pela miséria, com o pai tomado pela loucura. Não alcançou em vida o sucesso com o qual sonhara, seu enterro foi acompanhado por poucas pessoas e não teve repercussão nos jornais. Só muito tempo depois o valor de sua obra passou finalmente a ser reconhecido.

Referências:

BARBOSA, F. de A. “A vida de Lima Barreto”. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Lima Barreto: triste visionário”. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. “O Cemitério dos vivos”. São Paulo: Brasiliense. 1956.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. “Diário íntimo”. In: Barreto, Lima. “Um longo sonho do futuro”. Rio de Janeiro: Graphia. p. 7-150. 1993.

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