“Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. “O que você fez para ele te bater dessa maneira”? “Foi só um tapa”. “Se ela se desse ao respeito não teria apanhado”. Por que ela não se separa? Se fica apanhando é porque gosta”. Essas e tantas outras frases são repetidas sempre que casos de violência contra a mulher vem à tona. Naturalizada em meio a uma mentalidade machista, a violência contra a mulher é, muitas vezes, imperceptível e, quase sempre, vem acompanhada de tentativas de justificar o injustificável, culpabilizando a vítima.
Os índices desse tipo de violência no Brasil são alarmantes e foram muito intensificados com a pandemia. Quinze anos depois da promulgação da Lei Maria da Penha, ainda vemos diariamente mulheres sendo agredidas e mortas por seus companheiros. Isso não significa, porém, que a Lei tenha fracassado, ela foi um imenso avanço e garante que esses números não sejam maiores ainda.
A Lei 11. 340, intitulada Lei Maria da Penha, foi sancionada em 7 de agosto de 2006 e é considerada pela ONU uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher. Ela tipifica as formas de violência contra a mulher e garante a ela a possibilidade de ser atendida por políticas públicas que lhe permitam romper o ciclo de violência a que foi submetida.
Maria da Penha Maia Fernandes, a mulher que dá nome à lei, foi vítima de duas tentativas de feminicídio. Biofarmacêutica, ela conheceu o homem que tentou matá-la na USP, teve três filhas com ele, mas isso não o impediu de atirar em sua espinha dorsal e deixá-la paraplégica. Depois do ato hediondo, uma nova tentativa de pôr fim à vida de Maria da Penha fez com que ele sabotasse o chuveiro elétrico com o objetivo de provocar um acidente que pudesse matar a companheira.
Maria da Penha sobreviveu, seu agressor foi preso e seu nome foi dado a uma lei que ajuda a salvar a vida de milhares de mulheres. Ainda temos índices muito altos de violência contra a mulher, mas esses números poderiam ser muito maiores sem a Lei Maria da Penha.
Conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, foram notificados 1.350 casos de feminicídios no país, o que corresponde a um assassinato a cada 6 horas e meia. Mais de 60% das vítimas foram mulheres entre 19 e 44 anos e negras. 230.160 agressões foram registradas contra mulheres, uma a cada dois minutos. A brutalidade dos dados mostra a dimensão da violência a que as mulheres brasileiras são submetidas diariamente.
Historicamente, o Estado brasileiro tem sido bastante tolerante e omisso em relação à essa violência. Com a criação da Lei Maria da Penha, essa omissão vai chegando ao fim e o famoso provérbio vai ganhando um novo sentido, em briga de marido e mulher, a gente tem que meter a colher, tem que salvar a mulher e mostrar que a violência não se trata de uma questão pessoal, de foro íntimo, ela é uma questão pública e deve ser denunciada. Se milhares de mulheres são mortas e violentadas diariamente, é responsabilidade de toda a sociedade dar um fim a essa violência.
Além de garantir que as penas sejam aplicadas e cumpridas, é preciso garantir que as políticas públicas de acolhimento e proteção sejam colocadas em prática e que a mulher vítima de violência doméstica consiga ter o apoio necessário para sair do domínio de seu agressor.
Fruto da desigualdade de gênero que está enraizada na história do Brasil, a violência doméstica é um problema que permeia todas as classes sociais, que atinge mulheres de diferentes etnias, níveis de escolaridade, idade. Para que ela possa efetivamente ser rompida, além da importância da Lei Maria da Penha, é necessário que sejam garantidas condições materiais e emocionais para que as mulheres consigam sair de relacionamentos abusivos e quebrar essa rotina de violência que pode fazer com que percam a vida ou carreguem para sempre marcas físicas e psicológicas.
Com a Lei Maria da Penha foi possível romper com a impunidade que marcava os casos de violência doméstica. Embora nem todos os casos sejam denunciados, ainda haja um tratamento bastante inadequado em algumas delegacias e falte muito para que a violência contra a mulher deixe de existir, a criação dessa lei e, posteriormente, da Lei do Feminicídio foram conquistas que podem salvar a vida de muitas mulheres.
De acordo com pesquisas, 10% das mulheres deixaram de ser mortas após a criação da Lei Maria da Penha. Mesmo que a porcentagem pareça ser muito pequena, ela é um grande avanço na proteção à mulher, não só porque essas vidas foram poupadas, como porque foi graças a essa lei que tivemos o reconhecimento de que a mulher está sujeita à violência simplesmente porque ela é mulher e vive em uma sociedade machista que a enxerga como inferior. A partir disso, ações de prevenção da violência doméstica e políticas públicas de proteção à mulher passaram a ser desenvolvidas, garantindo que muitas mulheres pudessem ser salvas de um ciclo de violência do qual pareciam não ter escapatória.
Ainda há muito a ser feito para que os índices de violência contra a mulher e de feminicídio realmente sejam reduzidos, mas a Lei Maria da Penha foi um grande avanço, que permitiu a criação de delegacias especializadas no atendimento às vítimas, que garantiu que houvesse uma redução na impunidade, que permitiu que a tradicional prática de culpar a mulher pela violência sofrida passasse a ser questionada e combatida.
Combater discursos de ódio, desconstruir atitudes machistas naturalizadas, educar meninos e meninas para a equidade de gênero são tarefas fundamentais que devem ser colocadas em prática junto com a garantia de que a lei será cumprida.
Para que o Brasil deixe de ser o quinto país que mais mata mulheres no mundo, é preciso garantir que a Lei Maria da Penha seja efetivamente aplicada, que as denúncias sejam feitas, que as vítimas sejam acolhidas e protegidas e não julgadas pela violência sofrida.
A dor sofrida por Maria da Penha se transformou em sinônimo de luta para que outras mulheres não tivessem o mesmo destino. A lei que leva seu nome é um passo muito importante para garantir a proteção à mulher. Junto com isso, deve vir o oferecimento de condições para que as vítimas possam reconstruir as suas vidas e deixarem para trás a dor física e psicológica que as consome. Por fim, além de punir os agressores e atender as vítimas, é preciso lutar para que essa violência deixe de acontecer. Um primeiro passo para isso seria investir em uma educação que combata estereótipos que constroem uma ideia de que a masculinidade se define através da agressividade e da objetificação da mulher.
Referências: