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“Venha ver o pôr do sol”: o feminicídio nas páginas de Lygia Fagundes Telles

Publicado pela primeira vez em 1970, na antologia “Antes do baile verde”, o conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles impacta até hoje os seus leitores. Narrado em 3ª pessoa, ele parte de um acontecimento banal: o reencontro entre os ex-namorados Ricardo e Raquel. O local desse reencontro, entretanto, não tem nada de banal: um cemitério abandonado e é aí que reside toda a tensão do conto.

Ricardo convence a ex-namorada a ir com ele até aquele local para ver o mais lindo pôr do sol do mundo. Após muita insistência, Raquel aceita o convite e, assim, tem início sua caminhada rumo ao último pôr do sol que verá em sua vida.

A construção do espaço é fundamental para a compreensão do conto e do seu desfecho trágico. A partir do primeiro parágrafo, já percebemos que o ex-casal caminha rumo a um lugar isolado:

“Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde”.

O que Raquel encontrará ao final daquela ladeira tortuosa? Se as casas vão se rareando à medida que eles avançam na caminhada, haverá alguém que possa ouvi-los no alto da ladeira? Questões desse tipo vão instaurando o clima de suspense desde o início da narrativa. A escolha do local do encontro produz o clima de suspense e morbidez que vai marcar toda a leitura.

À medida que os dois avançam, uma memória visual e fotográfica vai sendo construída, alguns detalhes vão sendo enfatizados justamente para criar o tom de mistério e aumentar a tensão construída ao longo do conto.

Sem saber que caminha para a morte, Raquel não perde a oportunidade de humilhar Ricardo e de exaltar o novo namorado, rapaz riquíssimo, que vai levá-la a uma viagem ao Oriente. Enquanto Ricardo tenta relembrar os momentos felizes do relacionamento, Raquel faz questão de reafirmar o quanto está feliz com o atual namorado, especialmente porque a sua condição financeira é muito melhor que a do ex. Ela segue humilhando o rapaz, dizendo não entender como aguentou tanto tempo estar em um relacionamento com ele, reafirmando o quanto odeia cemitérios, ainda mais “cemitérios de pobres”.

Ricardo retruca, lembrando-lhe a beleza do local:

“- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja – disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas… Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso”.

Conforme caminham, cada vez mais distantes de qualquer civilização, Raquel vai ficando mais impaciente, diz estar cansada e pede para ir embora. Ricardo, então, começa a lhe contar memórias de sua infância, da época em que brincava ali com a sua prima:

“- Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

– Sua prima também?

– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos… Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a beleza-dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

– Vocês se amaram?

– Ela me amou. Foi a única criatura que… Fez um gesto. – Enfim, não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.

– Eu gostei de você, Ricardo.

-E eu te amei.. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?”

A história da morte precoce da prima amolece o coração de Raquel. Por um instante, ela se solidariza com a perda do ex-namorado. Aquele espaço abandonado e odioso para a mulher, ganha uma nova significação diante da história ouvida. O sofrimento e a dor de Ricardo tocam Raquel, mesmo sem ela saber que aquele local lhe trará um sofrimento muito maior, transformando-se em sua prisão eterna.

Envolvida com a história contada por Ricardo, Raquel não se dá conta de que caminha para a própria morte.

“- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. – Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida…- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.

– Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

– Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo”.

Nesse momento, Raquel se dá conta do que Ricardo planejara, a escolha do local, o abandono, o silêncio, ela jamais sairia dali. Aquele cemitério abandonado seria a sua prisão e lhe traria o silenciamento eterno. Ninguém jamais descobriria o seu paradeiro. A rejeição que Ricardo sofrera, o ciúme que sentia da amada, a inconformidade diante do desprezo que ela sentia por ele, o levaram a tramar o seu fim. Se Raquel não queria ficar com ele, também não ficaria com mais ninguém, não desfrutaria das benesses que o namorado riquíssimo lhe proporcionaria.

Dominado pelo ressentimento, pelo rancor, Ricardo tranca a mulher que ele diz amar dentro da tumba. Sua vingança estava consumada.

O conto de Lygia Fagundes Telles apresenta um feminicídio, um crime praticado por um homem que se sente frustrado por ter sido abandonado, que é incapaz de lidar com a rejeição, alguém que se sente fracassado e que não admite que a mulher que ele diz amar tenha se envolvido com outro homem e, ainda por cima, mais bem-sucedido do que ele.

Raquel verá seu último pôr do sol. A chegada da noite, representará a sua morte. Naquele cemitério miserável, completamente abandonado e distante da civilização, sua luz se apagará. Aqueles olhos verdes que tanto encantavam Ricardo se fecharão para sempre. Seus olhos oblíquos, que lembram os olhos de Capitu e que, talvez, na interpretação de Ricardo, a tornem tão dissimulada quanto ela, serão fechados dentro daquele jazigo. Ali ela ficará para sempre, naquele lugar de “abandono” e “solidão”, onde “as pontes com o outro mundo foram cortadas”, “a morte se isolou total. Absoluta”. Ninguém ouvirá seu grito “medonho, inumano”. Sua existência será para sempre apagada em um cemitério no qual “vivos e mortos, desertaram todos”.

Referências:

TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o pôr-do-sol. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Geração Editorial, 2006, p. 224 – 232.

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