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Um percurso pela história da fome no Brasil

Segundo Josué de Castro, o maior drama da humanidade é a fome. E esse drama esteve presente ao longo de toda a história do Brasil. Até a década de 1940, a fome era tratada como algo natural, fruto da ignorância da população mais pobre e resultado de problemas alheios à ação humana.

Foi a partir dos trabalhos de Josué de Castro, especialmente de sua obra “Geografia da fome”, que ficou explícito que o Brasil era um país de famélicos. Essa realidade que já vinha sendo explorada em romances regionalistas a partir de 1930, como “O quinze”, de Rachel de Queiroz”, “Seara vermelha”, de Jorge Amado e “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, passa a ser analisada teoricamente por Castro, que vai falar da fome como um fenômeno social, originado da organização social e econômica do país.

Com a criação dos Serviços de Alimentação e Previdência Social (SAPS), durante o Estado Novo, têm início as primeiras políticas nacionais de alimentação no Brasil. Tendo como público-alvo os trabalhadores, são criados restaurantes populares e começam a ser distribuídos alimentos básicos, visando uma orientação nutricional das camadas mais pobres, já que existia um mito de que “pobre não sabe comer”.

Em 1967, o governo militar extinguiu o SAPS e passou a focar em programas que racionalizassem a produção e distribuição de alimentos. No ano de 1972, foi criado o INAN, que estabeleceu um conjunto de programas voltados para o desenvolvimento de políticas de alimentação e nutrição das famílias mais vulneráveis. As ações, entretanto, tinham caráter assistencialista e não eram suficientes para sanar as questões estruturais relacionadas ao problema da fome.

Com a redemocratização, os programas existentes são abolidos e novos projetos visando o abastecimento alimentar passam a ser propostos. A década de 1980, no entanto, foi marcada por intensa crise econômica, o que aumentou o número de pessoas vivendo em situação de vulnerabilidade.

O agricultor Chico Marcelino se prepara para comer um calango, em Apuiarés, Ceará, 1983.

Durante o governo Collor, vários programas foram extintos, restando apenas o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). A sociedade civil, entretanto, começa a se organizar e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, cria a “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida”. A partir desse projeto, torna-se evidente a necessidade de ações de combate à fome e a pressão da sociedade faz com que o governo Itamar Franco institua o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).

Em 1995, com a chegada de Fernando Henrique Cardoso à Presidência, mais uma vez, há uma interrupção nas ações que já vinham sendo feitas e, através da criação do Programa Comunidade Solidária, fica a cargo da sociedade civil a atuação no combate à fome e à miséria.

Em 1999, é criada a primeira versão da Política Nacional de Alimentação e Nutrição e programas de transferência de renda, como o Bolsa Alimentação, passam a ser criados.

Foto tirada em uma cidade no interior do Pernambuco mostra uma mulher comendo um rato.

No ano de 2003, o presidente Lula cria o Programa Fome Zero, integrando diversos projetos de combate à fome, dentre eles, o Bolsa Família. A erradicação da fome passa a ser tratada como uma política pública, os avanços são significativos, mas além da transferência de renda, a manutenção desses avanços depende de ações que possibilitem que as famílias consigam ingressar no mercado de trabalho e saiam da situação de pobreza em que se encontram.

Em 2011, foi criado o Plano “Brasil sem miséria” que visava garantir a sustentabilidade dos resultados já alcançados. Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome, vendo seus índices de pessoas em situação de miséria reduzirem consideravelmente.

Esses avanços, no entanto, não vieram unidos a políticas públicas que fossem capazes de manter a melhora desses índices. No governo Temer, as políticas implantadas sofreram grandes cortes orçamentários, a crise econômica se intensificou e o número de vulneráveis sofreu um aumento significativo. Conforme o IBGE, entre os anos de 2017 e 2018, 10,3 milhões de pessoas enfrentaram algum grau de insegurança alimentar no país.

Foto de Arnaldo Carvalho, tirada em 2008, mostra uma menina que ficou cega por inanição.

Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu o CONSEA e passou a incentivar a agricultura agroexportadora. A crise econômica e a pandemia colocaram milhões de trabalhadores brasileiros em situação de vulnerabilidade. Quatro em cada dez famílias brasileiras não têm acesso a uma alimentação de qualidade e em quantidade suficiente.

Ao longo de sua história, o Brasil nunca conseguiu resolver completamente o problema da fome. Tivemos avanços em alguns momentos, mas o cenário atual é bastante preocupante. A insegurança alimentar é uma realidade cada vez maior de grande parte da população brasileira. O flagelo da fome, tão bem descrito nas páginas de nossa literatura, é extremamente real e tem se agravado com o aumento das taxas de pobreza e desemprego e com os cortes nos orçamentos destinados à agricultura e à proteção social.

Diante do agravamento da miséria, o Auxílio Emergencial e outros programas de distribuição de renda não têm sido suficientes para trazer segurança alimentar à parcela vulnerável da população. Estruturalmente marcado pela concentração de renda, por baixos salários, altos índices de desemprego, constante queda do poder aquisitivo, redução da oferta de alimentos, o Brasil vive um ciclo incessante de miséria, fazendo com que a fome seja um problema ininterrupto em sua história. Os avanços conquistados ao longo do tempo acabam não se sustentando porque eles não geram ações permanentes que reduzam a desigualdade social que marca o país.

O acesso à alimentação é direito inalienável de todo ser humano, a fome, entretanto, é um mal muito distante de ser resolvido. Em seu livro “Quarto de despejo”, Carolina Maria de Jesus fala que a escravidão atual é a fome, a fome cuja cor é amarela e que parece nunca deixar de fazer parte da história de nosso país.

Referências:

CASTRO, Josué de. Geografia da fome. O dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares: Achiamé, 1982. (Clássicos das Ciências Sociais no Brasil).

INSTITUTO CIDADANIA. Projeto Fome Zero. Uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil. São Paulo, Instituto Cidadania/Fundação Djalma Guimarães, 2001.  

MONTEIRO, C. A. “A dimensão da pobreza, da fome e da desnutrição no Brasil”. São Paulo, Estudos Avançados, vol. 9, n. 24, 1995, pp. 195-207. 

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