A figura da bruxa em nosso imaginário passa por diferentes representações. Construída pelo cinema, pela literatura, pelo teatro ou pela história, a imagem da bruxa é bem diversa e pode ser lembrada como a velha com uma verruga no nariz que aparece nas histórias infantis, como a bruxinha simpática e sedutora que encanta a todos com os seus encantos, como a feiticeira que domina poções e magias, como a criatura assustadora que povoa os pesadelos infantis, como mulheres que eram queimadas nas fogueiras da inquisição.
Historicamente, essa imagem também foi se modificando, num processo que envolve não só as noções de sagrado e profano, como também as alterações de ordem social, cultural e as representações de gênero que foram sendo construídas ao longo do tempo.
Os primeiros registros acerca de feiticeiras as apresentavam de forma positiva, como curandeiras, que conheciam a natureza e sabiam explorar o seu poder de cura.
Conforme o historiador Jules Michelet, foi na Idade Média que a imagem da feiticeira foi ressignificada, passando a ser apresentada como uma criatura a se temer, uma mulher adoradora do diabo e transgressora da fé. Para ele, a história da feiticeira na Idade Média se confunde com a própria trajetória da mulher nesse período e estaria diretamente ligada ao modo como o diabo era representado no imaginário cristão medieval.
A transformação de curandeira em bruxa, teria, portanto, uma relação com a própria concepção de mulher que passava a vigorar naquele momento. As mulheres que tinham alguma autonomia ou que se colocavam contra a ordem vigente eram vistas como demoníacas. Desse modo, as práticas de cura que, embora pagãs, eram aceitas, passaram a ser consideradas bruxaria e suas praticantes começaram a ser perseguidas.
De acordo com Rose Marie Muraro, esse será o estopim para que, do final do século XIV até meados do século XVIII, haja uma “repressão sistemática do feminino”, uma verdadeira “caça às bruxas”.
Durante o Renascimento, a perseguição às bruxas se intensificou. A Inquisição passou a fazer uso do “Malles Maleficarum”, um manual de caça às bruxas que condenava qualquer ato visto como heresia e passava a tratar as curandeiras como seres tão maléficos quanto o diabo. Escrita pelos inquisidores papais alemães Heinrich Kramer e James Sprenger, em 1486, a obra explicava detalhadamente como localizar uma bruxa, quais eram os feitiços mais comuns e mostrava o caráter diabólico da mulher. Segundo seus autores, a criatura maléfica responsável por expulsar o homem do paraíso era a mesma que o colocava em tentação e o seduzia com os prazeres da carne.
Nesse processo de perseguição aos hereges, benzedeiras, parteiras, curandeiras, camponesas pobres e idosas passaram a ser os primeiros alvos, o conhecimento medicinal de plantas passou a ser tratado como um ato herético, colocando essas mulheres na categoria de bruxas.
Vista como a origem do pecado, a partir da Idade Média, a mulher passa a ser tratada como a responsável pelos desvios masculinos. Sob sua influência maligna, o homem seria conduzido ao pecado. A única forma de expurgar os pecados dessa carne culpada seria através do arrependimento e da penitência. Às bruxas, restaria queimar o corpo nas fogueiras da Inquisição, já que elas representariam a própria encarnação do mal, pois renunciavam ao batismo e dedicavam seu corpo e alma ao demônio, chegando até mesmo a manter relações sexuais com ele.
Principalmente entre os anos de 1450 a 1750, a bruxaria era considerada algo tão terrível quanto doenças e tempestades. Crises sociais ou políticas, calamidades naturais ou doenças eram atribuídas à ação das bruxas e mulheres eram queimadas acusadas de práticas demoníacas. As caçadas às feiticeiras davam-se de forma violenta e frenética e a confissão de culpa vinha após sessões de tortura. Calcula-se que ao longo desse período cerca de 40 a 50 mil pessoas, a maior parte delas mulheres, foram executadas sob a acusação de bruxaria.
Um caso emblemático dessa perseguição às bruxas foi o que ocorreu em Salem, em 1692, quando o fundamentalismo religioso e a histeria coletiva levaram 150 acusados ao tribunal e provocaram a execução de 25 pessoas, num claro exemplo de como essas condenações tinham muito mais a ver com uma manipulação daquilo que era considerado diferente aos olhos de quem detinha o poder do que com práticas que realmente pudessem ser indícios de feitiçaria.
A última fogueira da Inquisição aconteceu em 1782, na Suíça, mas até hoje as discussões em torno do que correu durante esse período permanecem. Muitas análises apontam para o fato de que a figura da bruxa tem muito mais relação com a concepção de mulher ao longo do tempo que com a realização de atos que justificassem as acusações. Para Silvia Federici, é preciso não apenas abraçar “a imagem da bruxa, mas também aprender e conhecer mais a verdadeira história das mulheres que de fato foram acusadas, presas, perseguidas e assassinadas de forma tão brutal”.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.
BARROS, Maria N. A. de. “As deusas, as bruxas e a Igreja”. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.
FEDERICI, Silvia. “Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva”. São Paulo: Elefante, 2017.
FEDERICI, Silvia. “Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais”. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
MICHELET, Jules. “A feiticeira”. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.].
MURARO, Rose Marie. “Breve introdução histórica”. In: KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. “Malleus Maleficarum: O martelo das feiticeiras”. Rio de Janeiro:
BestBolso, 2015, p. 9-22
ZORDAN, P. B. M. B. G. “Bruxas: figuras de poder”. Estudos feministas, v. 13, n. 2, 2005.