O Caso dos Irmãos Naves, considerado o maior erro da história da justiça brasileira, ele escancarou as graves consequências que a aplicação errada das leis e dos processos judiciais podem acarretar na vida de pessoas comuns
Joaquim e Sebastião, os irmãos Naves, moravam na cidade de Araguari, em Minas Gerais. Os Naves eram agricultores e trabalhavam com cultivo e venda de cereais, em sociedade com o primo Benedito Pereira Caetano. Os três personagens citados acima foram protagonistas do maior erro judiciário da história do país.
A sinistra história começa com um negócio realizado pelo primo dos irmãos. Benedito, que possuía ambição maior que a dos primos, resolveu entrar em um negócio arriscado. Munido de coragem e inconsequência, realizou um empréstimo e comprou muitas sacas de arroz, visando vendê-las para mercados de Belo Horizonte, já que havia boatos de que o preço do cereal subiria consideravelmente.
Com o controle de preços por parte do Estado brasileiro, o arroz passou a ser um alimento muito barato e Benedito, tomando prejuízo considerável, vendeu as sacas que havia adquirido, recebendo todo o dinheiro em um cheque. Ao realizar o saque, guardou as notas dentro da calça, em suas partes íntimas e, ao sair para uma festa, desapareceu misteriosamente.
Joaquim e Sebastião, desesperados com o sumiço do parente, foram prestar queixa e narraram ao delegado que o primo havia sumido com uma quantidade considerável de dinheiro e eles estavam preocupados. O oficial de plantão desconfiou da história dos irmãos e resolveu abrir inquérito policial apontando os dois como principais suspeitos de um suposto crime. A possibilidade de um homicídio com ocultação de cadáver preocupou a população e causou uma comoção geral, jornais de cidades dos arredores e de Belo Horizonte passaram a noticiar o ocorrido e o caso ganhou repercussão e notoriedade.
No período em questão, o Brasil vivia o momento ditatorial do Estado Novo, o regime era uma ditadura civil-militar, e tinha Getúlio Vargas como líder totalitário. O presidente, preocupado com a repercussão negativa que o caso poderia render ao seu governo, designou como responsável pelas investigações o sanguinário delegado tenente militar Francisco Vieira dos Santos.
O oficial se dirigiu a Araguari e, precisando dar respostas rápidas para a população, inicia um inferno na vida dos irmãos Naves, até então principais suspeitos do crime. Sem nenhuma prova material e até mesmo indícios contundentes da participação dos irmãos, mas com a convicção de que eles eram os autores do delito, tenente Francisco inicia uma série de práticas de tortura para tentar arrancar confissão dos dois.
Os métodos adotados pelo militar causam indignação e repulsa até hoje. Junto com seus subordinados, o tenente Francisco fez extrações de dentes com alicates enferrujados, deixou os irmãos por muitas horas no pau de arara, protagonizou inúmeros espancamentos. Os militares chegaram a pendurar os irmãos no meio de um matagal e passaram mel em seus corpos para serem picados por insetos. Porém, o crime mais bárbaro cometido pelos agentes policiais foi o estupro da senhora Ana Rosa Naves, mãe dos irmãos, na frente dos próprios filhos. A cena fortíssima fez com que os acusados, que até aquele momento, mesmo com as torturas, se recusavam a confessar o crime que não haviam cometido, assinassem um documento confessional dizendo que mataram e sumiram com o corpo do primo para ficar com o dinheiro da venda do arroz.
A partir da confissão, a denúncia foi aceita pelo Ministério Público e os irmãos passaram a ser acusados judicialmente. O processo correu por 10 anos e os juízes não aceitaram a tese da defesa, que postulava que as provas da autoria do crime foram coletadas de forma ilegal.
Em 1938, os réus passaram por vários júris e apelações. Defendidos de forma gratuita pelo famoso advogado João Alamy Filho, que se comoveu com a situação dos réus, verificou-se vontade dos juízes e promotores pela condenação dos irmãos. Mesmo com a falta de provas, a tendência do julgamento sempre pendia para o lado do inquérito policial, documento cheio de vícios e erros. Ao final de três julgamentos, os réus foram absolvidos por júri popular. Como a sentença não era unânime e por ser um tempo de ditadura e não haver direitos constitucionais garantidos, o Tribunal de justiça inverteu a decisão do júri e condenou os irmãos a 25 anos e meio de prisão, que posteriormente passou por revisão penal e, assim, teve a pena reduzida para 16 anos. Após 8 anos e 3 meses em regime fechado, os Naves, mediante comportamento prisional exemplar, foram finalmente colocados em liberdade condicional.
Em 1948, Joaquim Naves morre em um asilo onde tratava uma doença degenerativa que contraíra por causa das pancadas na cabeça que recebera durante as sessões de torturas. Sebastião, o irmão sobrevivente, iniciou uma luta judicial para provar sua inocência e a do seu falecido irmão.
Em 1952, chega em Araguari a notícia de que o primo Benedito estava vivo e encontrava-se em uma cidade próxima. Sabendo da notícia, Sebastião procura desesperadamente o juiz da cidade e pede liberação, já que ainda cumpria pena em liberdade, para deixar o município e conferir se a notícia era realmente verdadeira. O magistrado aconselhou Naves a “deixar quieto”, pois ele já estava terminando de pagar o que devia para a justiça, mas concedeu o pedido. O delegado de Araguari e Sebastião foram até a cidade vizinha e encontraram o tão procurado Benedito, o primo dormia tranquilamente em uma cama confortável no quarto de uma casa de fazenda. Eufórico, Sebastião invadiu o quarto, com o delegado. Benedito, ao ver o primo, implorou para que Sebastião não o matasse, mas a reação foi outra, Naves abraçou o parente sumido e disse: “Graças a Deus você está vivo! Vamos para Araguari, para todos verem que meu irmão e eu somos inocentes!”.
O caso dos irmãos Naves é comumente citado nos cursos das faculdades de direito do país, sua história é evocada, geralmente, para ilustrar as terríveis consequências da condenação sem provas e sem o devido processo legal garantido em constituição.
Texto – Joel Paviotti e Juliana Paviotti
Referências:
ALAMY, João Filho. “O Caso dos Irmãos Naves – Um erro judiciário”. 3ª Edição. Belo Horizonte. Editora Del Rey, 1993.
SILVA, Camila Garcia da. “O caso dos irmãos Naves: ‘tudo o que disse foi de medo e pancada…’”. http://revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=58
OLIVEIRA, Eliene Rodrigues. “O caso dos irmãos Naves processamentos artísticos a partir de um erro jurídico. Dissertação de Mestrado. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2013.