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Por que o Brasil é o país do “Você Sabe com quem está falando”?

Essa pergunta, talvez seja uma das expressões mais antigas e mais usadas em nossa história, assim como pobreza e escravidão. E as três, sociologicamente, têm muito em comum.

Quando o Brasil ainda era uma colônia, boa parte do sistema burocrático estatal se encontrava em Portugal, a dezenas de dias e milhares de quilômetros da terra de Santa Cruz. Nessa situação, o poder foi sendo distribuído a homens brancos e ricos em diversas regiões do país. Esses homens passaram a receber o nome de coronéis, eles eram, muitas vezes, juízes, promotores, executores de pena, governadores, prefeitos, algoz e bem feitor em extensas propriedades de terra.

Como a burocracia do Estado era de difícil acesso, era mais fácil ao brasileiro ter amizade ou algum vínculo com um desses coronéis ou donos de terra, pois facilitava demais a vida, e encurtava a distância para obter privilégios. Esse tipo de prática só piorou durante os longos anos de escravidão no país, pois, em um sistema escravagista, a desigualdade social e a hierarquização de papéis sociais fazem parte de sua sustentação. Eu não posso e não devo ser confundido com pobre ou preto, pois sou poderoso. Então, a frase “você sabe com quem está falando” passou a fazer parte do vocabulário cotidiano. Era uma forma de provar que uma pessoa de menor poder e status social deve conhecer seu lugar.

Na literatura, muitos são os exemplos dessa prática que compõe o ethos do brasileiro e que caminha junto com uma outra marca de nosso ethos: a malandragem. Personagens como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Leonardo, de “Memórias de um sargento de milícias”, escrito por Manuel Antônio de Almeida, ilustram perfeitamente como se constrói a figura do malandro brasileiro e as relações de compadrio que movem até hoje muitas estruturas sociais de nosso país. Já a prática da carteirada pode ser vista em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, na qual o protagonista usa de seu status social e do fato de nunca “ter comprado o pão com o suor de seu rosto” para menosprezar aqueles que ocupam posições sociais inferiores. Mas é em “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto, que a carteirada fica explícita. Ao comunicar para a família de Cassi Jones a sua gravidez, Clara dos Anjos ouve em alto e bom tom que ela deveria colocar-se em seu lugar, afinal era “uma mulatinha, filha de um carteiro!”.

Essa prática, entretanto, não se restringe às páginas de nossa literatura, através da carteirada, o homem poderoso naturaliza seu poder, e o homem sem poder se inferioriza com o medo de algo acontecer de mal a ele e à sua família.

Em 1808, quando a família real chegou ao Brasil, o poder foi distribuído de forma hierárquica, concedendo, muitas vezes, títulos de Barão, Duque e Marquês para pessoas que nunca tinham convivido com alguma ideia de igualdade. A própria família portuguesa era fugitiva de Napoleão, o expoente da expansão da ideia de igualdade iluminista.

Em um país, pós 1808, que se aglomerava cada vez mais em cidades e vilas, o “Você sabe com quem está falando” virou uma forma de exercer poder de polícia. Duques e Barões andavam com os títulos no bolso, prontos para mostrar a qualquer funcionário público ou gente do povo que os intimassem de alguma maneira. E essa cultura permaneceu no país, presente em cada momento de nossa história, usada por todos, ricos e pobres. Era só encontrar alguém menos poderoso.

Após a aprovação da Lei Áurea, por exemplo, brancos pobres usavam a frase para se diferenciar de ex-escravizados que cobravam pelo serviço realizado e não pago.

No trânsito, o “você sabe com quem está falando” vem em forma de piscada de farol de uma Hilux. Dentro de uma fábrica, vem do uniforme diferenciado, do horário das 8 às 17 h, que distingue os chãos de fábrica do pessoal da chefia. Nas cidades do interior, vem através da famosa pergunta: “Você é filho de quem?”, como se o sobrenome fosse o cartão de visitas para ser aceito ou não em determinados grupos.

Em 1988, quando a Constituição disse que todo mundo era igual perante a lei, boa parte dos brasileiros, principalmente os mais privilegiados, não entendeu o objetivo da carta.

Também não fizeram esforço nenhum para entender, pois o Estado brasileiro continua ainda sendo usado de forma privada para favorecer homens e mulheres poderosas e oprimir os mais fracos.

Os últimos casos só vieram à tona por conta do celular. Gravar a ação e expor nas redes sociais cria um instrumento de defesa, que confronta as instituições de poder, as quais, outrora, sem essa prova, acreditariam apenas na versão do poderoso. E todo mundo está cansado de saber disso. Afinal, somos brasileiros. Gostamos de futebol, festas e carteirada. Muita carteirada.

E faça o favor de curtir esse texto e acreditar em nossas palavras, afinal, “você sabe com quem está falando”?

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